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29. “Revista Oitenta”: histórias do jornalismo utópico

Por Ivan Pinheiro Machado*

A Revista OITENTA foi uma publicação cultural da L&PM Editores que circulou nacionalmente entre o final da década de 70 e meados da década de 80. Inspirada num clássico da época – a Granta Magazine inglesa – tinha cara de livro e edição de revista. Os ensaios, artigos, entrevistas, resenhas de livros, quadrinhos publicados na Oitenta, traziam a marca do novo, do revolucionário, do singular. Sua presença foi marcante e aqueles que a conheceram não esquecem. Foram 9 volumes. O primeiro foi lançado em setembro de 1979 e o último em setembro de 1984.

Quando concebemos o projeto e o nome, tínhamos a intenção de celebrar a nova década que, segundo se previa, seria a década da ressurreição do país; democracia, liberdade, progresso social e econômico. Os anos 70 terminavam sem deixar saudades. O país preparava-se para mudar. José Antonio Pinheiro Machado, meu irmão, morava em Roma naquela época. Ele era o entusiasta principal do projeto da revista-livro. E numa longa e intensa troca de cartas, nós fizemos o projeto, a pauta e colocamos de pé o primeiro número em setembro de 1979.

Tal foi a repercussão do primeiro volume, que decidimos comemorar o lançamento do volume 2 com uma grande festa de réveillon. Durante muito anos, setores da  inteligentzia portoalegrense relembrariam o fantástico réveillon “Revista 80”, realizado no inesquecível bar “Doce Vida”, na rua da República, primeiro boteco-ícone do bairro Cidade Baixa de Porto Alegre, hoje a meca da boemia local. Neste copioso réveillon, foram destruídos casamentos sólidos, foram bebidas mais de 2 mil garrafas de cerveja, 600 garrafas de champanhe e, às 10 horas da manhã, ainda se comemorava a entrada da nova década que, certamente, seria a porta dourada do futuro. Nosso e do país.

Pela revista OITENTA passaram todos os grandes intelectuais da época. Aquela que Millôr considerava sua melhor entrevista foi publicada em Oitenta. Fellini, Josué Guimarães, Woody Allen, Simenon e muitos outros falaram para a OITENTA. Umberto Eco pré-Nome da Rosa, estreou no Brasil, via Revista OITENTA. Éramos 6 editores, o José Antonio Pinheiro Machado, o Paulo de Almeida Lima, o José Onofre, o Eduardo “Peninha” Bueno, o Jorge Polydoro e eu.

Os seis primeiros volumes da Revista Oitenta

A revista acabou, como tudo acaba. A utopia de uma publicação ousada e eminentemente cultural, sustentada somente pelo leitor, naufragou com o fim das ilusões. As nossas vidas e o país mudaram. Veio a democratização e o que se viu foi um país destroçado pelo projeto fracassado da ditadura. O começo da década que nós celebramos numa festa sem fim naquele réveillon de 1980 foi o contrário do que imaginávamos. A tão sonhada década de ouro virou historicamente a famosa “década perdida”. Inflação, hiper-inflação, corrupção, foram as marcas da volta do país à democracia. O presidente Tancredo, no qual o Brasil acreditava, adoeceu antes da posse. E nós herdamos a era Sarney. E como se não bastasse, ainda teríamos Collor no réveillon de 1990…

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo nono post da Série “Era uma vez… uma editora“.

28. O segredo de polichinelo

Por Ivan Pinheiro Machado*

Em 1985, depois de cair enfermo na véspera da posse, o primeiro presidente civil pós-golpe de 1964, Tancredo Neves, morreu 39 dias depois, emblematicamente no dia de Tiradentes, 21 de abril de 1985. Pelo seu estilo afável, conciliador, ideais democráticos, oratória impecável – e por ser o presidente que levaria o Brasil definitivamente à democracia – Tancredo Neves era admirado pelo povo brasileiro. A partir de sua doença, ele passou a ser cultuado e amado como um super pop star. Uma agonia que foi acompanhada minuto a minuto pela TV e trouxe junto para o panteão das celebridades o seu porta-voz: Antônio Britto. Britto era o homem que, com ar compungido e espessa barba escura, comunicava diariamente a 120 milhões de brasileiros, o estado de saúde do presidente que não conseguira assumir. Britto e Tancredo se confundiam no imaginário do povo. Competente como jornalista, Britto passou pelos principais jornais do Rio Grande do Sul e chegou a ser o mais respeitável repórter da TV Globo. Tancredo convidou-o para ser seu porta-voz. Com a morte do presidente, Britto iniciou brilhante carreira política. Foi o deputado mais votado no Rio Grande, Ministro da Previdência e depois Governador do Estado. No século 21, abandonou a política e hoje é um vitorioso empresário.

Pois bem. Quando morreu Tancredo, assumiu José Sarney, o vice. Com a Nação paralisada, através de meu irmão, José Antonio, contatamos Britto que estava escondido em algum lugar da serra gaúcha. Éramos todos ex-colegas de jornal, tanto no Correio do Povo, como na Zero Hora. Utilizando uma operação de inteligência sofisticadíssima, secretíssima e impecável, conseguimos descobrir onde estava Antônio Britto. E numa noite de neblina espessa, num hotel nos arredores de Gramado, combinamos que Britto juntamente com o jornalista Luis Cláudio Cunha, faria o livro contando tudo sobre a agonia e morte de Tancredo Neves. Uma verdadeira bomba (do bem) editorial estava nas nossas mãos. Acertamos todos os detalhes e, excitadíssimos com a novidade, descemos a serra em condições precaríssimas, já que um fog praticamente intransponível e característico do outono gaúcho tomava conta da estrada sinuosa e perigosa.

O Dudu Guimarães era um personagem folclórico entre o meio jornalístico. No legendário bar do IAB, ele sempre estava lá, rodando de mesa em mesa, sabendo de tudo que acontecia. Ele falava com todo mundo e acabava sempre sentado na mesa do cineasta Jorge Furtado, de quem antevia o futuro brilhante. Mas se chegasse no bar, por exemplo, o Chico Buarque, Caetano Veloso ou algum outro músico da moda, ou quem sabe um filósofo famoso ou um escritor célebre, em poucos instantes o Dudu abandonava a mesa de Jorge Furtado e se aboletava na mesa do ídolo.

Mas voltemos a 24 de abril de 1985, dia em que contratamos o grande bestseller do ano. Conseguimos transpor a neblina da serra, chegamos a Porto Alegre e logo o Eduardo “Peninha” Bueno, que trabalhava na L&PM, quis saber o motivo de tanta alegria. Eu e o Lima dissemos que não podíamos contar. Ele insistiu. Falamos que ele era boca grande demais. Ele continuou insistindo para saber o que estava acontecendo. Até que diante de tantos pedidos (e do juramento de que se aquela notícia vazasse ele seria demitido) contamos para o Peninha que o Britto escreveria o livro. Ele era a quarta pessoa a saber e jurou não contar nada. Juntos, decidimos comemorar nosso enorme segredo numa festa que se realizava todos os anos no antigo cinema Castelo no bairro da Azenha em Porto Alegre. O Troféu Scalp. Uma espécie de sacanagem ao Oscar, onde o Scalp, um grande salão de cabelereiros, oferecia um troféu estranhíssimo aos destaques do ano na área cultural. Na verdade, a entrega dos troféus era pretexto para um grande e imperdível baile pop. Saímos direto da editora para lá.

Ninguém, na imprensa brasileira sabia onde estava Britto. Todos queriam o seu depoimento e caçavam o porta-voz de Tancredo em Minas, Rio, São Paulo, Bahia. Uma complexa operação que envolveu até vôo privado, levara Britto em segredo para longe do mundo, oculto na neblina da serra gaúcha. Juramos que não falaríamos nada para ninguém. Nem do seu paradeiro, nem do livro. Éramos quatro cúmplices de um mesmo segredo.

Horas depois deste solene pacto, entramos lépidos e saltitantes, o Peninha e eu no cinema Castelo, já sonhando com o futuro super-betseller. Pois o Dudu Guimarães estava presente na festa (óbvio). Levantou-se subitamente da mesa do Jorge Furtado, onde havia ancorado – como sempre – e veio em nossa direção. Sorria – como sempre também – por trás de seus óculos de lentes espessas e embaçadas. Deu um abraço apertado no Peninha e perguntou:

– Vão lançar o livro do Britto, hein?!

Foi então que nosso mundo caiu.

P.S.:  nosso sonho de bestseller se concretizou 30 dias mais tarde, quando o livro “Assim morreu Tancredo” estourou no Brasil vendendo mais de 200 mil exemplares. E nunca ficamos sabendo quem contou para o Dudu.

A capa de "Assim morreu Tancredo", de Antônio Britto

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo oitavo post da Série “Era uma vez… uma editora“.

27. A última enciclopédia da era pré-Google

Por Ivan Pinheiro Machado*

O Jorge Furtado todo mundo conhece. Além de festejado roteirista e diretor de TV, é um dos grandes cineastas brasileiros, autor de “Meu tio matou um cara”, “Era uma vez dois verões”, “O homem que copiava”, o clássico curta-metragem “Ilha das Flores”, entre tantos outros trabalhos importantes. O Giba Assis Brasil é outro homem de cinema, exímio montador, parceiro de Jorge Furtado em praticamente todos os seus trabalhos, sócio dele na Casa de Cinema de Porto Alegre – que tem ainda Carlos Gerbase, Nora Goulart, Luciana Tomasi e Ana Luiza Azevedo como sócios. Ambos foram responsáveis pelo projeto de uma grande enciclopédia da cultura brasileira que a L&PM planejava executar e publicar. Se você perguntar ao Jorge ou ao Giba porque não saiu este que foi um dos projetos mais carinhosamente acalentados pela L&PM na época, eles dirão: “em poucos anos os caras estariam inventando o Google, e então…”.

Giba Assis Brasil e Jorge Furtado, atualmente

Tudo começou em 1981. O escritor Josué Guimarães entrou na nossa sala (o Lima e eu trabalhávamos na mesma sala) e declarou solenemente: “Não tenho mais tempo nem saco para ir nas escolas dar palestras para os estudantes. Me perdoem, tenho cinco livros pra escrever e a partir de agora vou me dedicar somente aos meus livros e ao meu trabalho na Folha de S. Paulo”. Dito isto, o Josué sorriu e completou: “Mas eu tenho uma ideia”. Foi assim que nasceu a L&PM Vídeo, uma ideia do Josué Guimarães. Seria assim: nós gravaríamos o depoimento dos autores da editora com um roteiro baseado nas questões que costumeiramente são postas pelos estudantes nas escolas. Então, em vez do autor, iriam até as escolas um operador, um aparelho de TV e o vídeo.

Contratamos o jornalista Marcelo Lopes para tocar a nova empresa. Depois vieram trabalhar no projeto Jorge Furtado, Giba Assis Brasil e José Pedro Goulart, que foi parceiro de Jorge e Giba em vários curta-metragens consagrados. Entre outros trabalhos, produzimos o único depoimento que Josué Guimarães deixou para a posteridade, já que morreria pouco tempo depois, em 1986. Gravamos ainda vários autores e especialmente um precioso vídeo que mostra o pintor Iberê Camargo executando diante das câmeras um retrato do escultor Xico Stockinger.

A verdade é que fizemos uma produtora de vídeos culturais muito antes de existir mercado e viabilidade econômica. Tudo era ainda muito precário, o equipamento caríssimo, não havia patrocínio e nós não conseguimos descobrir uma forma de ganhar algum dinheiro com aquilo. Passado o entusiasmo, faltou o dinheiro. Então, caímos na realidade, vendemos o equipamento e fechamos a produtora. E o Jorge e o Giba ficaram desempregados.

Foi aí então que resolvemos recontratar a dupla, já que eles estavam interessados em fazer a nossa tão sonhada “Enciclopédia da Cultura Brasileira” – uma grande enciclopédia que reuniria todos os nomes importantes da cultura brasileira, incluindo (apenas) cinema, literatura, música, artes plásticas, teatro, arquitetura e jornalismo. Mas… depois de 3.000 fichas prontas com os dados completos de pessoas e principais fatos da cultura brasileira em todos os tempos, os dois rapazes desapareceram. Antes que enlouquecessem, foram fazer seus filmes, seguir sua vocação. Durante muito tempo eu guardei as fichas em enormes caixas de papelão. Eu me divertia especialmente quando encontrava o Giba que, envergonhadíssimo, queria nos indenizar por não ter concluído o projeto… Mas a verdade é que, poucos anos depois, o mundo mudou. E, caso tivéssemos levado o projeto adiante, o Google certamente passaria como uma patrola sobre a nossa enciclopédia…

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo sétimo post da Série “Era uma vez… uma editora“.

26. A primeira vítima

Por Ivan Pinheiro Machado*

O Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, 3 de maio, é um dia a ser comemorado. Mais do que uma distinção e homenagem a comunicadores em geral – jornalistas de rádio, jornal e televisão, editores, escritores, blogueiros e todos que de uma forma ou de outra transmitem notícias, opiniões e ideias – esta data é, como o próprio nome indica, uma celebração da liberdade.

Sem imprensa livre não há democracia. Porque liberdade de imprensa subentende o exercício do primeiro dever do jornalista: dizer a verdade. E, como bem sabemos, os regimes totalitários não toleram a verdade. A L&PM Editores atravessou os famosos “anos de chumbo” da ditadura militar que começou em 1964. Fundamos a editora em 1974 e por 10 anos – até 1984 – amargamos, com toda a imprensa brasileira, a falta de liberdade, o medo e a intolerância. Passamos pelo que era o “trivial” naqueles tempos: apreensões de livros, grampos, agentes infiltrados entre os funcionários da editora e pressão econômica. Mas, como se vê, sobrevivemos.

Sempre tivemos como objetivo a edição de livros, mas, mesmo assim, nos aventuramos em editar dois jornais e duas revistas. Os jornais foram “Risco e texto” em 1976, um periódico com muito cartum, crônicas e humor (o humor era o único antídoto à burrice dos censores) e o “L&PM Moinhos” em 1993 (uma alusão ao bairro Moinhos de Vento em Porto Alegre, onde ficava a sede da editora). Aliás, o “L&PM Moinhos” era o único jornal de bairro no Brasil que tinha correspondente em Nova York.

As revistas foram a “Revista de Filosofia Política”, que teve 11 números e a revista “Oitenta”, que tornou-se cult desde o início e, até hoje, é saudada como uma das grandes revistas culturais já editadas neste país. Tinha o formato de um livro e, em média, eram 300 páginas por edição.

E é por isso que, hoje, nos incorporamos às homenagens prestadas aos editores de livros, autores e aos jornalistas de ofício, especialmente àqueles que estão no front da notícia, quase sempre desagradando poderosos. E para marcar este dia gostaria de sugerir um clássico sobre imprensa: “A Primeira vítima – o correspondente de guerra” de Philip Knightley, cujo título é uma alusão à célebre frase de um senador americano na década de 1930 e que sintetiza de forma genial o drama da missão do jornalista: “Quando começa a guerra, a primeira vítima é a verdade”.

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo sexto post da Série “Era uma vez… uma editora“.

25. O dia em que Victor Hugo me apresentou a Balzac

Por Ivan Pinheiro Machado*

O túmulo de Balzac no cemitério Père Lachaise em Paris

Meu pai gostava de discursos. Como deputado e advogado, foi um orador brilhante. Abastecia-se na leitura e em particular nos grandes discursos. Com isso, apresentava um pouco da grande literatura a mim e a meu irmão. Assim, conhecemos discursos célebres como o monólogo shakesperiano de Marco Antonio diante do cadáver de Julio César; o discurso de Churchill diante da ameaça nazista, onde ele pedia aos ingleses sangue, suor e lágrimas; a emocionada oração de Martin Luther King pela igualdade racial e muitos outros, entre os quais o discurso de Victor Hugo diante do túmulo de Balzac. Uma vez meu pai o leu em voz alta. Éramos pequenos, pré-adolescentes e aquelas palavras pungentes me impressionaram definitivamente. Muito anos depois, uma das frases do autor de “Os miseráveis” e “Corcunda de Notre Dame” ainda estava guardada nos recônditos da memória: “Monsieur de Balzac era um dos primeiros entre os maiores e um dos mais altos entre os melhores”. Foi então que um dia eu pensei… preciso ler este cara. Portanto, o discurso fúnebre, de tão brilhante, me levou a Balzac, cuja obra está sendo publicada na coleção L&PM Pocket. E aqui, neste espaço de lembranças, eu gostaria de compartilhar com meus 12 leitores este texto maravilhoso. Principalmente, se considerarmos o contexto em que foi dito. Quando morreu, em 18 de agosto de 1850, Balzac era um escritor muito, muito popular. Mas era detestado pela “inteligentzia” que o ridicularizava. Seu gênio estriônico, sua superprodução e a imensa empatia com o grande público, irritava os intelectuais. O genial Victor Hugo foi um dos poucos grandes escritores do seu tempo que teve a sensibilidade de antever o gênio de Balzac. Vejam só:

Discurso Fúnebre para Honoré de Balzac, por Victor Hugo – 21 de agosto de 1850

Cavalheiros:

O homem que acaba de descer a esta tumba era um daqueles a quem a dor pública acompanha seu cortejo fúnebre. Nos tempos por que passamos, todas as ficções se desvanecem. Doravante, os olhos não se fixam mais sobre as cabeças reinantes, mas sobre as cabeças que pensam, e o país inteiro sofre um abalo quando uma dessas cabeças desaparece. Hoje, o luto popular é provocado pela morte de um homem de talento; o luto nacional é a morte de um homem de gênio.

Cavalheiros, o nome de Balzac se incluirá no rastro luminoso que nossa época irá deixar para o futuro. Monsieur de Balzac fazia parte dessa pujante geração de escritores do século XIX que surgiu depois de Napoleão, do mesmo modo que a ilustre plêiade do século XVII depois de Richelieu, tal como se, no desenvolvimento da civilização, houvesse uma lei que faça suceder os que dominaram através do gládio por aqueles que dominam pelo espírito.

Monsieur de Balzac era um dos primeiros entre os maiores e um dos mais altos entre os melhores. Este não é o lugar de dizer tudo o que era essa esplêndida e soberana inteligência. Todos os seus livros formam apenas um só livro, o livro vivo, luminoso, profundo, em que se vê ir e vir, andar e mover-se, com um algo de assustador e terrível misturado ao real, toda a nossa civilização contemporânea; um livro maravilhoso que o poeta intitulou “comédia”, mas que poderia ter denominado “história”; que assume todas as formas e todos os estilos; que ultrapassa o picante e vai até Suetônio; que atravessa Beaumarchais e chega até Rabelais; um livro que é a observação e a imaginação; que prodigaliza o verdadeiro, o íntimo, o burguês, o trivial e o material; e que, por momentos, através de todas as realidades bruscamente e amplamente dilaceradas, deixa de repente entrever o ideal mais sombrio e mais trágico.

Contra sua vontade, quer ele quisesse ou não, quer consentisse ou não, o autor desta obra estranha e imensa tem o rosto vigoroso dos escritores revolucionários. Balzac vai direto ao fim. Ele enfrenta corpo a corpo a sociedade moderna. Ele arranca a todos alguma coisa: de alguns tira uma ilusão; de outros, a esperança; arranca destes um grito e àqueles uma máscara. Ele revira os vícios, disseca as paixões, esvazia e sonda o interior dos homens, sua alma, seu coração, suas entranhas e seu cérebro, o abismo que cada um de nós traz dentro de si mesmo. E, por um dom de sua livre e vigorosa inteligência, por esse privilégio das inteligências de nosso tempo que, tendo visto de perto as revoluções, percebem melhor o fim da humanidade e compreendem melhor a Providência, Balzac se destaca, sorridente e sereno, desses estudos temíveis que nos produziram a melancolia de Molière e a misantropia de Rousseau.

Vejam o que ele fez entre nós. Eis a obra que nos deixa; a obra elevada e sólida, robusto amontoado de lápides de granito: um monumento! A obra do alto da qual resplandecerá doravante sua celebridade. Os grandes homens constroem seus próprios pedestais; o futuro encarrega-se de erguer-lhes as estátuas.

Sua morte encheu Paris de estupor.

Há apenas alguns meses, ele retornara à França. Sentindo que a morte se aproximava, quis rever a pátria, como na véspera de uma grande viagem vamos abraçar nossa irmã. Sua vida foi curta, mas plena, mais cheia de obras que de dias. Ai de nós! Este trabalhador pujante, que nunca se fatigava, este filósofo, este pensador, este poeta, este gênio, viveu entre nós esta vida de borrascas, de lutas, de disputas, de combates, em todos os tempos o destino comum de todos os grandes homens. Hoje, aqui se encontra ele, em paz. Ele sai das contestações e dos ódios. No mesmo dia, ele entra na glória e no túmulo. Ele vai reluzir daqui para a frente, acima de todas estas nuvens escuras que se acumulam sobre nossas cabeças, entre as estrelas da pátria!

Todos vocês que estão aqui, não se sentem tentados a invejá-lo? Cavalheiros, qualquer que seja nossa dor em presença de tal perda, devemos sempre resignar-nos a tais catástrofes. Aceitá-las naquilo que elas têm de mais pungente e severo. É bom talvez, quem sabe é necessário, em uma época como a nossa, que de tempos em tempos uma grande morte comunique aos espíritos devorados pela dúvida e pelo ceticismo uma comoção religiosa. A Providência sabe o que faz, no momento em que coloca o povo assim, face a face com o mistério supremo e quando o faz meditar sobre a morte, que é a grande igualdade e que é também a grande liberdade.

A Providência sabe o que faz, pois este é o mais elevado de todos os ensinamentos. Aqui não podem existir senão os pensamentos mais austeros e mais sérios em todos os corações, quando um sublime espírito faz majestosamente sua entrada na outra vida, quando um desses seres que planaram por longo tempo acima das multidões com as asas visíveis do gênio, desfraldando de repente estas outras asas que não se viam, mergulha bruscamente no desconhecido.

Não, não é o desconhecido!… Não, eu já disse em outra ocasião dolorosa e não me cansarei de repeti-lo!… Não, não é a noite, é a luz! Não é o fim, é o começo! Não é o nada, é a eternidade! Todos vocês que me escutam, não é verdade? São justamente esses féretros que nos demonstram a imortalidade; é na presença de certos mortos ilustres que sentimos mais distintamente os destinos divinos dessas inteligências que atravessam a terra para sofrer e para se purificar e que o homem pára e pensa e então diz a si mesmo que é impossível que aqueles que foram gênios durante a vida não se transformem em almas depois da morte!

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo quinto post da Série “Era uma vez… uma editora“.

24. E-books: vanguarda “avant la lettre”

Por Ivan Pinheiro Machado*

No ano de 1999, virada de século, falava-se muito em fim do mundo e, creia, em e-books. Os jornais noticiavam insistentemente e as feiras dedicavam espaços generosos à nova tecnologia. Afinal, o livro seria o produto ideal para transações via internet. Paga-se e pronto: o download é feito imediata e rapidamente no suporte escolhido. Influenciados pela mídia que exaltava o “novo livro”, resolvemos fazer aquela que seria a primeira “editora digital” do país. Conversamos com o editor e especialista em questões digitais Sérgio Lüdtke que recém tinha vendido sua participação na editora Artes e Ofícios em Porto Alegre. O resultado desta conversa foi a criação de uma empresa chamada “Digibook”, onde a L&PM entraria com os arquivos digitais de seus livros e Sérgio daria o suporte tecnológico para operarmos online. Trabalhamos durante uns seis meses nesta novidade. Digitalizamos 200 títulos, enquanto o Sérgio tentava desenvolver uma interface para ser instalada nos computadores. Através desta interface, seria feito o download do livro.

Apesar de termos trabalhado muito, nossa Digibook não decolou. Acabamos ficando no meio do caminho por falta de solução a várias questões técnicas. Enquanto isso, a mídia foi silenciando, silenciando, até que, lá pelos idos de 2002, ninguém mais falava em “livro digital”. Nem aqui, nem nas grandes feiras de livro, como Frankfurt e Londres. Nós arquivamos a nossa Digibook e seus 200 títulos num CD e seguimos tocando a vida. Depois da “bolha” de desinteresse que durou uns cinco anos, o tema e-book voltou à tona no Brasil. Enquanto os Estados Unidos rapidamente criavam um mercado importante, por aqui, o assunto engatinhava. Somente a partir de 2009 os editores se mobilizaram. Hoje, começa a haver uma oferta importante de títulos. Surfando na onda dos iPads, o mercado brasileiro dá seus primeiros passos rumo ao futuro. Para termos um mercado de livros digitais, precisamos ter o suporte ou, os e-readers, aparelhos nos quais o público lerá os livros digitais. E a venda de leitores tem crescido exponencialmente no Brasil, embalada pela febre dos tablets.

12 anos nos separam do nosso projeto pré-histórico. A Digibook acabou indo parar naquele velho CD, no fundo de alguma gaveta. Mas o mundo não acabou – ao contrário, evoluiu – e a L&PM sobreviveu à virada do século, criando a maior coleção de livros de bolso do país e já está disponibilizando mais de 150 títulos digitais nos sites das livrarias Saraiva e Cultura. Enquanto isso, o nosso parceiro Sérgio Lüdtke tem tido uma brilhante carreira como jornalista e expert em mídias digitais. Hoje, ele edita a revista Época nas versões online e para Ipad. Só não vingou como futurólogo. Indagado pelo jornal de negócios “Gazeta Mercantil” sobre o futuro dos e-books (era o ano de 1999) ele declarou “vocês verão, no Natal de 2001 todo mundo vai ganhar um e-book de presente”…

A L&PM e o livro digital

A partir de hoje, dia 19 de abril, a L&PM Editores inicia de forma profissional a sua entrada no mundo dos livros digitais. Distribuídos pela DLD (Distribuidora de Livros Digitais), ele já estão disponíveis para o grande público em nosso catálogo. O objetivo é disponibilizar mais de 400 títulos até o fim do ano e 1.000 títulos até o final de 2012.

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo quarto post da Série “Era uma vez… uma editora“.

23. Um sobressalto nos anos 90: ou a arte de cair para cima

Por Ivan Pinheiro Machado*

No final da década de 1990, o modelo de editora que colocamos em prática lá nos paleolíticos anos 70 começou a dar sinais de fadiga. A L&PM tinha cumprido um ciclo de 20 anos e penava indefinidamente num ambiente econômico adverso. Sem capital de giro (éramos muito jovens e muito duros quando fundamos a editora), tínhamos atravessado ditadura, crises econômicas, inflação de até 80% e 4 moedas; a saber: Cruzeiro, Cruzeiro Novo, Cruzado, Cruzado Novo, até chegarmos –  estropiados –  no Real. Era um momento de grande aperto fiscal e os juros eram exorbitantes. Dependentes dos bancos, sofríamos com juros escorchantes. E para piorar o cenário, grandes grupos editoriais nacionais e estrangeiros se movimentavam com grande poderio econômico e acirravam a concorrência pelos grandes autores. Estávamos extremamente fragilizados economicamente. E no meio da crise, como um boxeador cambaleando no meio do ringue, quase “jogamos a toalha”, o que no boxe significa desistir, encerrar a luta. A prova disso é que, em 1996, a L&PM esteve à venda pelo valor simbólico de um Real. Ou seja, se alguém quisesse, entregávamos a editora pelo valor da dívida.

Ninguém apareceu. Foi nesta época de incertezas que conhecemos um economista inglês, casado com uma brasileira e com um escritório de consultoria empresarial estabelecido no Rio de Janeiro. Chamava-se Ken Baxter. Morreu muito jovem, aos 50 anos, e deixou saudades entre os seus amigos. Ken era uma pessoa extraordinária. Interessou-se pelos nossos imensos problemas e foi, juntamente com os advogados José Antonio Pinheiro Machado, Elias Guerra e Fernando Carvalho, decisivo na nossa recuperação. Debaixo desta tempestade, decidimos que íamos lutar para sobreviver. E a primeira coisa a fazer, era… mudar. Quem não tem dinheiro, tem que ter ideias. Foi aí que decidimos concentrar nossa imaginação e nossa energia no projeto L&PM POCKET. Ken e nossos advogados “blindariam” a editora contra um pedido de falência. Enquanto isso, trabalharíamos 20 horas por dia para materializar a ideia dos livros de bolso.

Foi assim que tudo começou. Enquanto o “mercado” previa o eminente naufrágio da L&PM, a magnífica logística de distribuição da coleção POCKET foi sendo montada cuidadosa e vertiginosamente. Era uma corrida contra o tempo. Precisávamos de eficiência empresarial para implantar um sólido projeto cultural. Muitos foram os que nos ajudaram. Os autores, quase na sua totalidade, se mantiveram solidários, especialmente o grande escritor Sergio Faraco, que chegou a dar expediente na L&PM, chamando novos autores e editando antologias de autores clássicos para a Coleção Pocket. Foi criado um anel de solidariedades que nos protegeu e nos deu forças. Neste ambiente de incerteza, repito, nosso amigo Ken foi fundamental. Ele acreditou sempre e tinha uma fé impressionante que a coleção de livros de bolso “salvaria” a editora.

Fomos voltando das cinzas e, devagar, conseguimos retomar e ampliar ainda mais o nosso espaço, conquistando milhares de leitores. Hoje, temos mais de 2 mil livros ativos em catálogo. Neste mês, entre 18 lançamentos, a L&PM estará lançando o livro “Mulheres” de Charles Bukowski.  Volume número 950 da coleção L&PM POCKET, líder de mercado e a maior coleção de livros de bolso do Brasil.

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo terceiro post da Série “Era uma vez… uma editora“.

22. A história do fracasso de Andy Warhol… na L&PM

Por Ivan Pinheiro Machado*

Era o final de 1987 e  ainda ecoava no mundo Pop as lamentações pela morte de Andy Warhol. Um suposto erro médico, numa banal cirurgia de vesícula em fevereiro daquele ano, tinha tirado a vida do inventor da Pop Art. Europa e Estados Unidos preparavam retrospectivas de sua obra gráfica e cinematográfica. Tudo ao som de Lou Read e seu “Velvet Underground”, descobertas de Warhol.

Foi neste clima profundamente andywarhoniano que, na Feira de Frankfurt de 1987, 8 meses depois de sua morte, um agente literário ofereceu a mim e ao Paulo Lima os famosos “Diários de Andy Warhol”, um enorme calhamaço recheado de mexericos e fofocas novaiorquinas do uper jet set com aproximadamente 800 páginas que sairia no início de 1988 no Estados Unidos. É claro que nos interessamos. Nós e outros 15 editores brasileiros. Como havia uma grande procura, o agente fez um leilão via fax (não havia e-mail na pré-história) e, depois de vários lances, fizemos uma oferta de U$ 20 mil dólares de adiantamento de direitos autorais. Lá no período paleolítico, no final dos anos 80, um dólar era um dólar de verdade! Não esta merreca de hoje em dia. Um dólar chegava a ser o que hoje equivale a três reais no câmbio oficial e uns 4 reais no famoso “black”, ou mercado negro. Tudo isto em meio a uma inflação de dois dígitos ao mês. Foi assim que recebemos a “feliz” notícia que todos os outros 14 pretendentes tinham se afastado do leilão e, portanto, o livro era nosso.

Confesso que quando baixou a poeira, não chegamos a festejar muito. No começo da operação, quando vencemos o leilão, aqueles 20 mil dólares nos tiraram apenas algumas horas de sono. No final, com o livro nas livrarias no começo do ano de 1989, passaram a nos tirar noites inteiras de sono… Foi assim:

Contratamos o músico e escritor Celso Loureiro Chaves, recém chegado de uma longa estadia nos Estados Unidos, para fazer a tradução. Foram 1.000 laudas. Revisamos em tempo recorde e, finalmente, um ano e pouco depois de assinarmos o contrato, colocamos um belo livro de 800 páginas em corpo 10, formato 16 x 23 cm nas livrarias de todo o Brasil. O preço seria o equivalente hoje a uns 100 reais. Imprimimos 5.000 exemplares para que a tiragem amortizasse o preço do calhamaço. Não precisou mais do que uma semana para que nossas esperanças se esvaissem. Nenhuma reposição. Só devoluções daqueles livreiros que apostaram – como nós – e fizeram pilhas nas suas livrarias. As pilhas foram muito observadas, mas ficaram intactas. Apesar da imprensa ter dado enorme destaque. O grande investimento em direitos, tradução (eram 1.000 laudas!), papel e gráfica tinha ido pelo ralo. Foi o livro mais festejado e não-comprado da história de mais de três décadas de L&PM. E nosso primeiro contato com aquilo que chama-se fracasso editorial. Dez anos depois, decidimos acabar com as enormes, gigantescas, pilhas que se acumulavam no nosso depósito. Aí então Andy Warhol foi um verdadeiro bestseller. Vendemos os 3 mil exemplares que sobraram por R$ 10,00 na Feira do Livro de Porto Alegre de 1997. Foi o saldo mais disputado da história de mais de meio século de Feira.

Sobre o livro, vale dizer que ele foi organizado por Pat Hackett, secretária e amiga de AW, que editou e escreveu o diário baseado nos telefonemas e no convívio diário com ele. Quem espera tiradas geniais e pistas para entender o mega universo Pop, fica profundamente decepcionado. Os diários empilham ti-ti-tis de celebridades, maldades, fofocas, tricôs e não revelam mais do que um personagem fútil, deslumbrado com o mundo dos ricos e das celebridades. Em bom português, pode-se dizer que, apesar das suas 800 páginas, os diários de Andy Warhol possuem a profundidade de uma poça d’ água. E não fazem jus ao seu gênio.

A fábrica do pop

Sua primeira grande criação foi a Factory (estúdio multi-disciplinar, onde Warhol pintava, desenhava e fazia seus célebres filmes underground. Depois criou a revista Interview que tornou-se uma referência no jornalismo cultural mundial. Célebre pela “invenção” da serigrafia como forma de arte, ou da concepção da obra de arte como um múltiplo, ele influenciou gerações. Em suas mãos, o banal se transformou em objeto artístico. Fotos criaram um clima inconfundível com seus alto contrastes e cores fortes. Cada retrato recebia dezenas de versões, sendo colorizado a partir de uma matriz que era reproduzida em várias telas. AW criou também o culto à celebridade e inventou a máxima bilhões de vezes repetida de que “todos teriam seus 15 minutos de fama”. Em 1968, foi alvejado três vezes por uma ex-funcionária da Factory, doublê de dramaturga e lésbica que se prostituía para ganhar a vida. Conseguiu sobreviver. Morreu dezenove anos depois. Foi enterrado em Pittsburgh, cidade onde nasceu, descendente de uma família de judeus húngaros, e onde está hoje o Museu Andy Warhol.

Embora os diários, como livro, não façam jus a dimensão do artista, AW é o último grande esteta num mundo que banalizou-se plasticamente. Ele transformou a arte num objeto de consumo e foi o monstro sagrado das artes visuais. Tímido, adquiriu, post-mortem, a celebridade e a importância do artista que fez a última grande revolução na arte moderna. Andy Warhol também está na série Biografias L&PM.

O mito Marilyn imortalizado pelas cores do pai da pop arte

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21. Nós e o SNI (Serviço Nacional de Informações)

Por Ivan Pinheiro Machado*

O Luis Claúdio Cunha, combativo jornalista e autor do clássico “Operação condor: o sequestro dos uruguaios” (L&PM, 2009) me alertou no ano passado (2010) que a Casa Civil da Presidência da República estava disponibilizando, para qualquer cidadão brasileiro, sua ficha (se houvesse) junto aos órgãos de segurança durante o período da Ditadura Militar (1964-1985). Embora eu jamais tenha me considerado um perigoso subversivo, por curiosidade, solicitei formalmente ao Gabinete da Presidência da República a minha “folha corrida” nos órgãos de segurança e repressão da ditadura militar..

Sinceramente, achava que receberia uma resposta tipo “nada consta”. Eis que, poucos dias depois, aterrissou na minha mesa um envelope pardo enviado por Sedex, cujo remetente era “Casa Civil da Presidência da República”, com brasão e tudo. Abri o envelope. Havia termos de responsabilidade, confidencialidade, etc, e um aviso dizendo que aquilo era um resumo de cada registro em meu nome, junto ao Serviço Nacional de Informações (SNI), no período entre 1974 e 1985. Caso eu desejasse as informações detalhadas, teria de fazer nova solicitação. As informações resumidas, com o número de cada “ocorrência”, compreendiam umas dez páginas, com mais de 30 registros. Muitas delas me ligavam ao meu pai e ao Paulo Lima, meu sócio até hoje, e ao jornalista Mario Lima, pai do Paulo, todos nós descritos como perigosos subversivos. Registravam os livros ditos “perigosos para o regime” que lançávamos e incluía como fato altamente subversivo, uma jornalzinho de humor, o “Risco”, que editávamos no início da década de 80. Há registros tais como “Ivan Gomes Pinheiro Machado chegou em Frankfurt, Alemanha, em 14 de outubro de 1976. Em 18 de outubro já estava em Londres, Inglaterra, hospedado na casa de Douglas Aguiar… Em seguida foi para Lisboa onde participou de reuniões com grupos de exilados e elementos anti-regime liderados por Josué Guimarães, Fernando Gasparian…” e por aí vai.  Havia menções  também a conversas com o “perigoso subversivo Flavio Koutzii, recém chegado da Argentina”. Os registros do SNI descreviam minuciosamente os nossos passos quando ciceroneamos em Porto Alegre Luis Carlos Prestes, na sua volta do exílio. Prestes era amigo e antigo companheiro de partido do meu pai. Enfim, havia nos resumos cifrados, numerados e carimbados, outros detalhes da minha vida na década de 70 de que eu até já havia esquecido. Li atentamente tudo aquilo e fiquei pensando, pensando. A gente era permanentemente espionado e não sabia. Ou melhor, suspeitávamos que éramos espionados, mas isto sempre se punha na conta da paranóia geral daqueles tempos. “Cuidado com o telefone!”, ou “Não fala alto que o fulano é do DOPS…”. Por outro lado, ingenuamente, não nos achávamos importantes para os órgãos de informação. Quando houve a primeira apreensão de livros por motivos políticos, nos demos conta de que nossa atividade era de risco; aqueles que faziam livros, para uma ditadura, eram mais perigosos do que os criminosos comuns.

Charge de Santiago que está no livro “Retroscópio” (L&PM, 2010)

Lembro até de uma frase do Millôr Fernandes, sobre aqueles tempos sombrios: “Nós temos muita importância para sermos presos e nenhuma importância para sermos soltos…”. Era bem isso. Hoje se vê; quanto dinheiro eles gastavam para espionar os cidadãos! Estabelecer conexões para xeretear a viagem de um menino de 23 anos em Frankfurt, Londres, Lisboa! Os documentos oficiais que me chegaram às mãos comprovam como uma ditadura é burra, insensível e dispendiosa. Deu pra ver que tínhamos, sim, razões para ter medo. E deu também para chegar a uma melancólica conclusão sobre a natureza humana. Há, nestas dezenas de folhas que eu recebi da Casa Civil, informações quase íntimas, que faz supor que o inimigo/informante, se não estava ao lado, estava muito próximo e muitas vezes, quem sabe, sentado na nossa mesa no bar…

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20. O “cara” (ou o chato) do Balzac

Por Ivan Pinheiro Machado*

Um dia, estava numa livraria num Shopping em Porto Alegre e uma senhora de uns 60 anos, especialmente bem vestida, aproximou-se, pediu licença e perguntou com uma informalidade em nada condizente com sua sóbria vestimenta e sua idade: “O senhor é o “cara” do Balzac?”. Rindo, respondi alguma coisa e fui saindo… A verdade é que a senhora tinha razão. Por curiosas razões, acabei me transformando em uma espécie de “amador aprofundado” na vida e obra de Honoré de Balzac. Vou contar como e porque aconteceu isso:

Em 2004, dentro do projeto editorial da Coleção L&PM POCKET decidimos publicar as principais histórias da Comédia Humana já que, há muito tempo, ela não se encontrava nas livrarias os romances de Balzac. As 100 histórias (novelas, romances e contos) que compõem a Comédia Humana foram editadas no Brasil pela editora Globo na década de 1940 numa edição capitaneada por Paulo Rónai. Na década de 1980, houve uma reedição dos 17 volumes da Comédia Humana. Logo esgotaram-se os exemplares e nunca mais se ouviu falar dos romances do Balzac. Nas livrarias, só eram encontrados volumes dispersos e geralmente os factuais, livros que ele escreveu sobre a imprensa, “teoria do andar” e alguns ensaios sobre comportamento e política. Ilusões Perdidas, Pai Goriot, Esplendores e misérias das cortesãs, o célebre Mulher de 30 anos, O lírio do Vale, Pele de Onagro, só para citar alguns, apenas eram encontrados em sebos e olhe lá! Pois nós decidimos recolocar o grande Honoré nas livrarias. Mais precisamente na nossa coleção de bolso e em novas traduções feitas pelos melhores tradutores disponíveis no mercado editorial. Pois por melhor que fossem as traduções da edição da Globo, eram traduções datadas. O que, aliás, era normal, já tinham sido feitas na década de 1940.

Uma vez tomada a resolução, por onde começar? Primeiro, tentamos um contato com a Globo. Quem sabe comprar as traduções e revisá-las? Fomos informados de que era impossível negociar ou republicar a “Comédia” devido a questões jurídicas. Pensei em consultar algum especialista que pudesse me dar um roteiro de publicação, uma ordem de importância. Perguntei em Porto Alegre, São Paulo, Rio… e nada. Poucos nomes me foram sugeridos, todos indisponíveis. Tentei nas universidades, fui atrás de “balzaquistas”, mas acabei dando sempre com a cara na porta. Foi então que – na falta dos especialistas, resolvi eu mesmo, exercendo meu ofício de editor, mergulhar no mundo impressionante do inventor do romance moderno. Ou seja, resolvi abraçar Balzac. E me pus a ler. Compramos aqui na editora uma edição da Plêiade, da Gallimard, para ter o Balzac no original e nos sebos, reunimos a edição dos 17 volumes da Globo, capa dura, da década de 1950. E me pus a ler, ler, ler, quase pirei. Saí atrás de textos sobre Balzac. Procurei raridades em Paris, o livro de Teophile Gautier, o ensaio de Baudelaire, o livro de Alain, a biografia escrita por Stefan Zweig, a escrita por Maurois, outras mais, enfim, viajei. Foram cerca de 40 romances e novelas, uns 15 contos do Balzac e mais uns 20 livros sobre ele, além de meia dúzia de biografias. Quase virei um chato.

Um dia, num evento literário na Livraria Cultura em Porto Alegre, promovido pela Aliança Francesa, fui convidado a falar sobre Balzac. Era eu e o professor Voltaire Schilling, um homem de vasto saber. Cada um tinha um tempo determinado para falar. O prefessor Voltaire fez uma bela explanação sobre a relação entre Balzac e Paris. Falou uns trinta minutos e me passou a bola. Fiz um perfil biográfico rápido de Balzac, citei seus livros principais e – como curiosidade – falei sobre a “diversidade sexual” em Balzac, ou seja, vários de seus livros contemplam todas as tribos, da homossexualidade masculina, feminina, viciados em sexo, polígamos, cortesãs insaciáveis e até zoofilia. Enfim, comecei a contar histórias, passagens, falar sobre a Comédia Humana, seus personagens que se entrecruzam, e fui falando, falando, até que o francês da Aliança Francesa, sentado entre eu e o professor Voltaire (que tinha colocado na minha frente vários papeizinhos, que eu nem notei) agarrou-se no meu braço e sussurou no meu ouvido: “Chega!”. Eu, espantado, interrompi em meio à frase em que eu falava dos estonteantes atributos físicos da Condessa de Langeais… Ele me tomou o microfone e disse. “Muito obrrrrigado a todos! Assim encerramos nosso ciclo sobrrrrre Balzac”.  Em tempo: os tais papeizinhos que eu não li, diziam o seguinte: “Faltam dois minutos”, outro dizia “Um minuto” e outro “Tempo encerrado, faça a conclusão”…

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