Gustave Flaubert nasceu em 12 de dezembro de 1821. Um gênio que daria origem à Madame Bovary, mas que quando criança foi considerado literalmente um idiota. Jean-Paul Sartre era obcecado por ele. Tanto que dedicou anos da sua vida a escrever a biografia definitiva de Flaubert. Em O idiota da família, Sartre proporciona ao leitor um livro de cerca de 3.000 páginas, dividido em três tomos, que é lido como uma grande aventura. Até hoje inédito em língua portuguesa, O idiota da família finalmente poderá chegar às mãos dos brasileiros em nossa língua mater. A L&PM Editores já recebeu da tradutora Júlia da Rosa Simões as primeiras mil páginas do volume 1 que será lançado em meados de 2013. E como hoje é aniversário de Flaubert, aqui vai um presente a todos aqueles que aguardam ansiosamente a chegada deste que é considerado um projeto soberbo, o livro que encerra a obra sartriana. Com vocês, o prefácio de O idiota da família finalmente em português:
PREFÁCIO
O idiota da família é a continuação de Questões de método. Seu tema: o que podemos saber de um homem, hoje em dia? Pareceu-me que só poderíamos responder a essa pergunta através do estudo de um caso concreto: o que sabemos – por exemplo – de Gustave Flaubert? Isso significa totalizar as informações de que dispomos sobre ele. Nada prova, de início, que essa totalização seja possível e que a verdade de uma pessoa não seja plural; os dados são muito diferentes por natureza: ele nasceu em dezembro de 1821, em Rouen – eis um; ele escreve à amante, muito tempo depois: “A Arte me espanta” – eis outro. O primeiro é um fato objetivo e social, confirmado por documentos oficiais; o segundo, também objetivo quando nos atemos à coisa dita, por seu significado remete a um sentimento vivido, e nada decidiremos sobre o sentido e o alcance desse sentimento se antes não tivermos estabelecido se Gustave é sincero, em geral e, particularmente, nesta circunstância. Não corremos o risco de chegar a camadas de significados heterogêneos e irredutíveis? Este livro tenta provar que a irredutibilidade é apenas aparente e que cada informação colocada em seu devido lugar torna-se a parte de um todo que continua a fazer-se e, ao mesmo tempo, revela sua profunda homogeneidade com todas as outras.
Porque um homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamá-lo de universal singular: totalizado e, por isso mesmo, universalizado por sua época, ele a retotaliza ao reproduzir-se nela como singularidade. Universal pela universalidade singular da história humana, singular pela singularidade universalizante de seus projetos, ele exige ser estudado simultaneamente pelas duas pontas. Precisaremos encontrar um método apropriado. Apresentei os princípios de um em 1958 e não repetirei o que disse então: prefiro mostrar, cada vez que necessário, como ele se faz no próprio trabalho para obedecer às exigências de seu objeto.
Uma última palavra: por que Flaubert? Por três motivos. O primeiro, bastante pessoal, há muito tempo deixou de valer, apesar de estar na origem dessa escolha: em 1943, ao reler sua Correspondência na má edição Charpentier, tive a sensação de ter contas a ajustar com ele e que devia, com vistas a isso, conhecê-lo melhor. Desde então, minha antipatia inicial transformou-se em empatia, única atitude exigida para compreender. Por outro lado, ele se objetivou em seus livros. Qualquer pessoa dirá: “Gustave Flaubert é o autor de Madame Bovary”. Qual, então, a relação do homem com a obra? Eu nunca o disse até agora. Nem ninguém, que eu saiba. Veremos que é dupla: Madame Bovary é derrota e vitória; o homem que se manifesta na derrota não é o mesmo exigido para sua vitória; será preciso entender o que isso significa. Por fim, suas primeiras obras e sua correspondência (treze volumes publicados) manifestam-se, veremos, como a confidência mais estranha, a mais facilmente decifrável: como se ouvíssemos um neurótico falando “ao acaso” no divã do psicanalista. Acreditei que seria permitido, para esta difícil demonstração, escolher um tema fácil, que se revela facilmente e sem o saber. Acrescento que Flaubert, criador do romance “moderno”, está na interseção de todos os nossos problemas literários de hoje.
Agora, é preciso começar. Como? Pelo quê? Pouco importa: penetramos em um morto da maneira que quisermos. O essencial é partir de um problema. Daquele que escolhi, geralmente pouco se fala. Leiamos, no entanto, essa passagem de uma carta à srta. Leroyer de Chantepie: “É de tanto trabalhar que consigo calar minha melancolia natural. Mas o velho fundo muitas vezes reaparece, o velho fundo que ninguém conhece, a chaga profunda sempre escondida”[1]. O que isso quer dizer? Uma chaga pode ser natural? Seja como for, Flaubert nos remete à sua proto-história. O que se precisa tentar conhecer é a origem dessa chaga “sempre escondida” e que, em todo caso, tem origem em sua primeira infância. Este não será, acredito, um mau começo.
[1]Croisset, 6 de outubro de 1864.
Lançamento de peso: os três volumes de "O idiota da família" na edição francesa. O primeiro volume chega em meados de 2013 pela L&PM