Ivan Pinheiro Machado
Balzac amava Paris.
Nasceu em Tours, na belíssima Touraine, região célebre pelos magníficos castelos construídos à beira do Rio Loire – este que é o maior rio da França, com cerca de 1.000 quilômetros, e que serpenteia por quase metade do território francês. E próximo a Tours, numa extensão que ocupa quase 100 mil hectares, estão os mais belos castelos do mundo que, no ano 2000, foram tombados como patrimônio da humanidade pela Unesco. Há castelos que estão por lá desde muito antes da descoberta do Brasil. A beleza, o luxo e a imponência de cerca de trezentos “châteaux” contam a história da arquitetura francesa – da sobriedade contida na Idade Média do século X ao ardor renascentista do século XV. Tours foi capital da França entre 1461 e 1560, quando Paris passou a ser a capital definitiva. Balzac saiu de lá adolescente, logo após abandonar o internato onde esteve isolado de tudo e de todos. Apostava numa carreira literária e conseguiu convencer seu pai a sustentá-lo em Paris, onde estudaria Direito e escreveria romances. De fato, Honoré de Balzac se formaria advogado, mas – naquele momento – não convenceria como romancista, nem no suspeito círculo dos familiares. Era 1820 e ele tinha 21 anos. Precisou de 10 anos mais para construir os alicerces da sua obra e finalmente convencer como escritor. Paris foi impactante o suficiente para submeter Balzac aos seus mistérios, suas mazelas e seus encantos. Magnetizado pela paisagem da cidade luz, fez com que o desconcertante contraste de ruelas medievais, miseráveis, mal-cheirosas, com salões reluzentes, parques esplêndidos e palácios fosse uma constante em sua obra. Posso até me arriscar em dizer que, se a Comédia Humana tem um personagem principal, este personagem é a cidade de Paris.
A grande cortesã
Impregnado do bucolismo das paisagens de Tours e arredores, Balzac capitulou diante da diversidade arquitetônica, econômica, moral e espiritual de Paris. Foi um amor à primeira vista. Ele certamente diria o que disse Henrique IV, o rei da França, 250 anos antes, ao ser obrigado a renunciar ao protestantismo para agradar seus súditos de maioria católica: “Paris vaut bien une messe” (Paris vale bem uma missa).
Ele se apoderou da cidade para ambientar seus quase 3.000 personagens. Para usar uma expressão bem balzaquiana, “pintou” Paris como poucos. Tanto é verdade que uma das partes centrais da Comédia, que inclui cerca de um terço do total dos quase cem títulos é exatamente Cenas da Vida Parisiense. Portanto, a Comédia Humana é um dos mais importantes documentos literários sobre a cidade. Pela primeira vez na literatura, uma cidade é personagem de uma grande obra. Ele a descreveu maravilhosamente e a elevou a proporções quase humanas. A frase final de O Pai Goriot reflete a idéia de Balzac: o jovem Rastignac está chocado e decepcionado com a vida quando enterra seu amigo Goriot. Do alto do cemitério Père-Lachaise ele vê Paris imensa espalhada em volta do Sena e exclama: “Paris, agora é entre nós dois!”
Eugène Rastignac era o alter ego de Balzac. Ambos enfrentaram Paris. Entenderam que era necessário ser cínico, ser duro e ser forte para não serem engolidos pelo turbilhão daquela cidade fascinante. São centenas as passagens em que Balzac fala sobre Paris. Eu escolhi uma, que se não é a mais bonita, nem a mais brilhante, pelo menos fará você entender a relação “literária” dele com a cidade, a ponto de transformá-la em protagonista em muitas de suas tramas:
“Há aqueles que conhecem tão bem sua fisionomia que percebem nela até mesmo uma verruga, um sinal de nascença, o menor rubor. Para outros, Paris é sempre uma maravilha monstruosa, um espantoso conjunto de acontecimentos, a cidade em que transcorrem cem mil romances, a verdadeira cabeça do mundo. Só que para estes Paris é uma criatura completa: cada ser humano, cada detalhe de prédio são apenas um fragmento do tecido celular dessa grande cortesã (…).”
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