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29. “Revista Oitenta”: histórias do jornalismo utópico

Por Ivan Pinheiro Machado*

A Revista OITENTA foi uma publicação cultural da L&PM Editores que circulou nacionalmente entre o final da década de 70 e meados da década de 80. Inspirada num clássico da época – a Granta Magazine inglesa – tinha cara de livro e edição de revista. Os ensaios, artigos, entrevistas, resenhas de livros, quadrinhos publicados na Oitenta, traziam a marca do novo, do revolucionário, do singular. Sua presença foi marcante e aqueles que a conheceram não esquecem. Foram 9 volumes. O primeiro foi lançado em setembro de 1979 e o último em setembro de 1984.

Quando concebemos o projeto e o nome, tínhamos a intenção de celebrar a nova década que, segundo se previa, seria a década da ressurreição do país; democracia, liberdade, progresso social e econômico. Os anos 70 terminavam sem deixar saudades. O país preparava-se para mudar. José Antonio Pinheiro Machado, meu irmão, morava em Roma naquela época. Ele era o entusiasta principal do projeto da revista-livro. E numa longa e intensa troca de cartas, nós fizemos o projeto, a pauta e colocamos de pé o primeiro número em setembro de 1979.

Tal foi a repercussão do primeiro volume, que decidimos comemorar o lançamento do volume 2 com uma grande festa de réveillon. Durante muito anos, setores da  inteligentzia portoalegrense relembrariam o fantástico réveillon “Revista 80”, realizado no inesquecível bar “Doce Vida”, na rua da República, primeiro boteco-ícone do bairro Cidade Baixa de Porto Alegre, hoje a meca da boemia local. Neste copioso réveillon, foram destruídos casamentos sólidos, foram bebidas mais de 2 mil garrafas de cerveja, 600 garrafas de champanhe e, às 10 horas da manhã, ainda se comemorava a entrada da nova década que, certamente, seria a porta dourada do futuro. Nosso e do país.

Pela revista OITENTA passaram todos os grandes intelectuais da época. Aquela que Millôr considerava sua melhor entrevista foi publicada em Oitenta. Fellini, Josué Guimarães, Woody Allen, Simenon e muitos outros falaram para a OITENTA. Umberto Eco pré-Nome da Rosa, estreou no Brasil, via Revista OITENTA. Éramos 6 editores, o José Antonio Pinheiro Machado, o Paulo de Almeida Lima, o José Onofre, o Eduardo “Peninha” Bueno, o Jorge Polydoro e eu.

Os seis primeiros volumes da Revista Oitenta

A revista acabou, como tudo acaba. A utopia de uma publicação ousada e eminentemente cultural, sustentada somente pelo leitor, naufragou com o fim das ilusões. As nossas vidas e o país mudaram. Veio a democratização e o que se viu foi um país destroçado pelo projeto fracassado da ditadura. O começo da década que nós celebramos numa festa sem fim naquele réveillon de 1980 foi o contrário do que imaginávamos. A tão sonhada década de ouro virou historicamente a famosa “década perdida”. Inflação, hiper-inflação, corrupção, foram as marcas da volta do país à democracia. O presidente Tancredo, no qual o Brasil acreditava, adoeceu antes da posse. E nós herdamos a era Sarney. E como se não bastasse, ainda teríamos Collor no réveillon de 1990…

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo nono post da Série “Era uma vez… uma editora“.

Autor de hoje: Honoré de Balzac

Tours, França, 1799 – Paris, França, 1850

Honoré de Balzac nasceu em Tours, em 20 de maio de 1799, filho do camponês Bernard-François Balssa (mais tarde Honoré mudou o nome para Balzac, precedido de um aristocrático de) e de Anne-Charlotte-Laure Sallambie. A mãe de Balzac, 33 anos mais jovem que Bernard, era filha de uma modesta burguesia da província e teve uma relação distante e ao mesmo tempo marcante com o filho mais jovem, Honoré. Ele conheceu na infância e na adolescência a solidão e a dureza dos internatos, onde fez sua formação básica. Formou-se em Direito, profissão que jamais praticou. Aventurou-se em numerosos negócios em busca de fortuna, fracassando nisso de maneira sistemática. Paralelamente ao sonho de enriquecer, escreveu uma das maiores e mais consistentes obras da história da literatura mundial. Morreu em 18 de agosto de 1850.

Obras principais (Quase a totalidade da obra de Balzac foi publicada sob o título geral de A comédia humana): A pele de Onagro, 1831; Eugénie Grandet, 1833; O Pai Goriot, 1834; O lírio do vale, 1835; A mulher de trinta anos, 1835; Ilusões perdidas, 1843; Esplendores e misérias das cortesãs, 1847.

HONORÉ DE BALZAC por Ivan Pinheiro Machado

A comédia humana é o título geral que dá unidade a obra de Honoré de Balzac, composta de 89 romances, novelas e histórias curtas. Esse enorme painel do século XVIII foi ordenado pelo autor em seis subséries: Cenas da vida privada, Cenas da vida provinciana, Cenas da vida parisiense, Cenas da vida militar, Estudos filosóficos e Estudos analíticos.

A comédia humana é um monumental conjunto de histórias, em que cerca de 2.500 personagens se movimentam por vários livros, ora como protagonistas, ora como coadjuvantes. Genial observador do seu tempo, Balzac soube como ninguém captar o “espírito” do século XVIII. A França, os franceses e a Europa no período entre a Revolução Francesa e a Restauração têm nele um pintor magnífico e preciso. Friedrich Engels, em uma carta a Karl Marx, dizia que “eu aprendi mais em Balzac sobre a sociedade francesa da primeira metade do século, inclusive nos seus pormenores econômicos (por exemplo, a redistribuição da propriedade real e pessoal depois da Revolução), do que em todos os livros dos historiadores, economistas e estatísticos da época, todos juntos (…)”.

Tido como o inventor do romance moderno, Balzac deu tal dimensão aos seus personagens que, já no século XVIII, mereceu de Hippolyte Taine, o maior crítico literário do seu tempo, a seguinte observação: “Como William Shakespeare, Balzac é o maior repositório de documentos que possuímos sobre a natureza humana”. Esse criador de milhares de personagens foi – quem sabe – o mais balzaquiano de todos. Obcecado pela idéia da glória literária e da fortuna, adolescente ainda, convenceu sua família de recursos limitados a sustentá-lo em Paris por no máximo dois anos, tempo suficiente para que ele se consagrasse como escritor e jornalista. Começou a vida literária publicando obras de terceira categoria sob pseudônimo. Era a clássica “pena de aluguel”. Escrevia sob encomenda histórias de aventuras, policiais, romances açucarados, folhetins baratos, qualquer coisa que lhe rendesse algum dinheiro.

Somente em 1829, dez anos depois de sua chegada a Paris, Balzac sente-se seguro para colocar o seu verdadeiro nome na capa de um romance. É quando sai A Bretanha em 1799 – um romance histórico em que tentava seguir o estilo de Sir Walter Scott, o grande romancista inglês de seu tempo. Paralelamente à enorme produção que detona a partir de 1830, seus delírios de grandeza levam-no a criar negócios que vão desde gráficas e revistas até minas de prata. No entanto, fracassa como homem de negócios. Falido e endividado, reage criando obras-primas para pagar seus credores em uma destrutiva jornada de trabalho de até dezoito horas diárias. “Durmo às seis da tarde e acordo à meia-noite, às vezes passo 48 horas sem dormir….” queixava-se em cartas aos seus amigos.

Em 1833, teve a antevisão do conjunto de sua obra e passou a formar uma grande “sociedade”, com famílias, cortesãs, nobres, burgueses, notários, personagens de caráter melhor ou pior, vigaristas, homens honrados e avarentos, que se cruzariam em várias histórias diferentes sob o título geral de A comédia humana. Vale ressaltar que em sua imensa galeria de tipos, Balzac criou um espetacular conjunto de personagens femininos que – como dizem unanimemente seus biógrafos e críticos – tem uma dimensão muito maior do que o conjunto dos seus personagens masculinos.

Aos 47 anos, massacrado pelo trabalho, pela péssima alimentação e o tormento das dívidas que não o abandonaram pela vida inteira, ainda que com projetos e esboços para pelo menos vinte romances, Balzac já não escrevia mais. Consagrado e reconhecido na França e na Europa inteira como um grande escritor, havia construído em frenéticos dezoito anos esse monumento com quase uma centena de histórias. Morreu em 18 de agosto de 1850, aos 51 anos, pouco depois de ter casado com a condessa polonesa Eveline Hanska, o grande amor de sua vida.

Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. Todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Para melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.

26. A primeira vítima

Por Ivan Pinheiro Machado*

O Dia Internacional da Liberdade de Imprensa, 3 de maio, é um dia a ser comemorado. Mais do que uma distinção e homenagem a comunicadores em geral – jornalistas de rádio, jornal e televisão, editores, escritores, blogueiros e todos que de uma forma ou de outra transmitem notícias, opiniões e ideias – esta data é, como o próprio nome indica, uma celebração da liberdade.

Sem imprensa livre não há democracia. Porque liberdade de imprensa subentende o exercício do primeiro dever do jornalista: dizer a verdade. E, como bem sabemos, os regimes totalitários não toleram a verdade. A L&PM Editores atravessou os famosos “anos de chumbo” da ditadura militar que começou em 1964. Fundamos a editora em 1974 e por 10 anos – até 1984 – amargamos, com toda a imprensa brasileira, a falta de liberdade, o medo e a intolerância. Passamos pelo que era o “trivial” naqueles tempos: apreensões de livros, grampos, agentes infiltrados entre os funcionários da editora e pressão econômica. Mas, como se vê, sobrevivemos.

Sempre tivemos como objetivo a edição de livros, mas, mesmo assim, nos aventuramos em editar dois jornais e duas revistas. Os jornais foram “Risco e texto” em 1976, um periódico com muito cartum, crônicas e humor (o humor era o único antídoto à burrice dos censores) e o “L&PM Moinhos” em 1993 (uma alusão ao bairro Moinhos de Vento em Porto Alegre, onde ficava a sede da editora). Aliás, o “L&PM Moinhos” era o único jornal de bairro no Brasil que tinha correspondente em Nova York.

As revistas foram a “Revista de Filosofia Política”, que teve 11 números e a revista “Oitenta”, que tornou-se cult desde o início e, até hoje, é saudada como uma das grandes revistas culturais já editadas neste país. Tinha o formato de um livro e, em média, eram 300 páginas por edição.

E é por isso que, hoje, nos incorporamos às homenagens prestadas aos editores de livros, autores e aos jornalistas de ofício, especialmente àqueles que estão no front da notícia, quase sempre desagradando poderosos. E para marcar este dia gostaria de sugerir um clássico sobre imprensa: “A Primeira vítima – o correspondente de guerra” de Philip Knightley, cujo título é uma alusão à célebre frase de um senador americano na década de 1930 e que sintetiza de forma genial o drama da missão do jornalista: “Quando começa a guerra, a primeira vítima é a verdade”.

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo sexto post da Série “Era uma vez… uma editora“.

Ernesto Sábato: a morte de um humanista

Morreu dia 30 de abril, aos 99 anos na Argentina, Ernesto Sábato, um dos maiores escritores latinoamericanos de todos os tempos. Foi um dos poucos a enfrentar a perigosa e assassina ditadura argentina. Neste embate, confrontou-se com outro gênio, Jorge Luis Borges, que apoiava a ditadura.

Curiosamente, Sábato começou a vida como cientista. Formou-se em física pela Universidade de Buenos Aires, fez doutorado e teve uma passagem pelo reconhecido Laboratório Curie de Paris e pelo Instituto Tecnológico de Massachussets, onde realizou trabalhos sobre radiações atômicas. Após a segunda guerra, abandonou a ciência e passou a dedicar-se exclusivamente à literatura. Deixou entre muitos outros livros, três romances geniais: O túnel (1961), Entre Heróis e Tumbas (1961) e Abadon, o exterminador (1971).

Humanista, auto intitulado anarquista, teve a coragem de fazer o grande levantamento da tragédia causada pela ditadura argentina. Seu célebre livro Nunca Mais foi um marco nas lutas democráticas na América Latina, quando 90% dos países eram dominados pelas ditaduras. Publicado no Brasil em 1985 pela L&PM Editores, ele faz um inventário emocionado dos crimes da ditadura argentina, narrando episódios de sequestros, torturas e assassinatos com os respectivos nomes das vítimas. Por questões de trabalho, trocamos intensa correspondência com Sábato. Ele sempre nos atendeu, gentil e atencioso. E no alto de suas cartas, impressionava poeticamente o nome de sua cidade no interior da Argentina: Santos Lugares.

Ernesto Sábato viveu um século. Uma vida muito longa onde esteve próximo de todo o mal que os homens podem causar aos seus semelhantes. Talvez por isto tenha sido este grande humanista, defensor intransigente das liberdades e dos direitos da pessoa humana. (Ivan Pinheiro Machado)

25. O dia em que Victor Hugo me apresentou a Balzac

Por Ivan Pinheiro Machado*

O túmulo de Balzac no cemitério Père Lachaise em Paris

Meu pai gostava de discursos. Como deputado e advogado, foi um orador brilhante. Abastecia-se na leitura e em particular nos grandes discursos. Com isso, apresentava um pouco da grande literatura a mim e a meu irmão. Assim, conhecemos discursos célebres como o monólogo shakesperiano de Marco Antonio diante do cadáver de Julio César; o discurso de Churchill diante da ameaça nazista, onde ele pedia aos ingleses sangue, suor e lágrimas; a emocionada oração de Martin Luther King pela igualdade racial e muitos outros, entre os quais o discurso de Victor Hugo diante do túmulo de Balzac. Uma vez meu pai o leu em voz alta. Éramos pequenos, pré-adolescentes e aquelas palavras pungentes me impressionaram definitivamente. Muito anos depois, uma das frases do autor de “Os miseráveis” e “Corcunda de Notre Dame” ainda estava guardada nos recônditos da memória: “Monsieur de Balzac era um dos primeiros entre os maiores e um dos mais altos entre os melhores”. Foi então que um dia eu pensei… preciso ler este cara. Portanto, o discurso fúnebre, de tão brilhante, me levou a Balzac, cuja obra está sendo publicada na coleção L&PM Pocket. E aqui, neste espaço de lembranças, eu gostaria de compartilhar com meus 12 leitores este texto maravilhoso. Principalmente, se considerarmos o contexto em que foi dito. Quando morreu, em 18 de agosto de 1850, Balzac era um escritor muito, muito popular. Mas era detestado pela “inteligentzia” que o ridicularizava. Seu gênio estriônico, sua superprodução e a imensa empatia com o grande público, irritava os intelectuais. O genial Victor Hugo foi um dos poucos grandes escritores do seu tempo que teve a sensibilidade de antever o gênio de Balzac. Vejam só:

Discurso Fúnebre para Honoré de Balzac, por Victor Hugo – 21 de agosto de 1850

Cavalheiros:

O homem que acaba de descer a esta tumba era um daqueles a quem a dor pública acompanha seu cortejo fúnebre. Nos tempos por que passamos, todas as ficções se desvanecem. Doravante, os olhos não se fixam mais sobre as cabeças reinantes, mas sobre as cabeças que pensam, e o país inteiro sofre um abalo quando uma dessas cabeças desaparece. Hoje, o luto popular é provocado pela morte de um homem de talento; o luto nacional é a morte de um homem de gênio.

Cavalheiros, o nome de Balzac se incluirá no rastro luminoso que nossa época irá deixar para o futuro. Monsieur de Balzac fazia parte dessa pujante geração de escritores do século XIX que surgiu depois de Napoleão, do mesmo modo que a ilustre plêiade do século XVII depois de Richelieu, tal como se, no desenvolvimento da civilização, houvesse uma lei que faça suceder os que dominaram através do gládio por aqueles que dominam pelo espírito.

Monsieur de Balzac era um dos primeiros entre os maiores e um dos mais altos entre os melhores. Este não é o lugar de dizer tudo o que era essa esplêndida e soberana inteligência. Todos os seus livros formam apenas um só livro, o livro vivo, luminoso, profundo, em que se vê ir e vir, andar e mover-se, com um algo de assustador e terrível misturado ao real, toda a nossa civilização contemporânea; um livro maravilhoso que o poeta intitulou “comédia”, mas que poderia ter denominado “história”; que assume todas as formas e todos os estilos; que ultrapassa o picante e vai até Suetônio; que atravessa Beaumarchais e chega até Rabelais; um livro que é a observação e a imaginação; que prodigaliza o verdadeiro, o íntimo, o burguês, o trivial e o material; e que, por momentos, através de todas as realidades bruscamente e amplamente dilaceradas, deixa de repente entrever o ideal mais sombrio e mais trágico.

Contra sua vontade, quer ele quisesse ou não, quer consentisse ou não, o autor desta obra estranha e imensa tem o rosto vigoroso dos escritores revolucionários. Balzac vai direto ao fim. Ele enfrenta corpo a corpo a sociedade moderna. Ele arranca a todos alguma coisa: de alguns tira uma ilusão; de outros, a esperança; arranca destes um grito e àqueles uma máscara. Ele revira os vícios, disseca as paixões, esvazia e sonda o interior dos homens, sua alma, seu coração, suas entranhas e seu cérebro, o abismo que cada um de nós traz dentro de si mesmo. E, por um dom de sua livre e vigorosa inteligência, por esse privilégio das inteligências de nosso tempo que, tendo visto de perto as revoluções, percebem melhor o fim da humanidade e compreendem melhor a Providência, Balzac se destaca, sorridente e sereno, desses estudos temíveis que nos produziram a melancolia de Molière e a misantropia de Rousseau.

Vejam o que ele fez entre nós. Eis a obra que nos deixa; a obra elevada e sólida, robusto amontoado de lápides de granito: um monumento! A obra do alto da qual resplandecerá doravante sua celebridade. Os grandes homens constroem seus próprios pedestais; o futuro encarrega-se de erguer-lhes as estátuas.

Sua morte encheu Paris de estupor.

Há apenas alguns meses, ele retornara à França. Sentindo que a morte se aproximava, quis rever a pátria, como na véspera de uma grande viagem vamos abraçar nossa irmã. Sua vida foi curta, mas plena, mais cheia de obras que de dias. Ai de nós! Este trabalhador pujante, que nunca se fatigava, este filósofo, este pensador, este poeta, este gênio, viveu entre nós esta vida de borrascas, de lutas, de disputas, de combates, em todos os tempos o destino comum de todos os grandes homens. Hoje, aqui se encontra ele, em paz. Ele sai das contestações e dos ódios. No mesmo dia, ele entra na glória e no túmulo. Ele vai reluzir daqui para a frente, acima de todas estas nuvens escuras que se acumulam sobre nossas cabeças, entre as estrelas da pátria!

Todos vocês que estão aqui, não se sentem tentados a invejá-lo? Cavalheiros, qualquer que seja nossa dor em presença de tal perda, devemos sempre resignar-nos a tais catástrofes. Aceitá-las naquilo que elas têm de mais pungente e severo. É bom talvez, quem sabe é necessário, em uma época como a nossa, que de tempos em tempos uma grande morte comunique aos espíritos devorados pela dúvida e pelo ceticismo uma comoção religiosa. A Providência sabe o que faz, no momento em que coloca o povo assim, face a face com o mistério supremo e quando o faz meditar sobre a morte, que é a grande igualdade e que é também a grande liberdade.

A Providência sabe o que faz, pois este é o mais elevado de todos os ensinamentos. Aqui não podem existir senão os pensamentos mais austeros e mais sérios em todos os corações, quando um sublime espírito faz majestosamente sua entrada na outra vida, quando um desses seres que planaram por longo tempo acima das multidões com as asas visíveis do gênio, desfraldando de repente estas outras asas que não se viam, mergulha bruscamente no desconhecido.

Não, não é o desconhecido!… Não, eu já disse em outra ocasião dolorosa e não me cansarei de repeti-lo!… Não, não é a noite, é a luz! Não é o fim, é o começo! Não é o nada, é a eternidade! Todos vocês que me escutam, não é verdade? São justamente esses féretros que nos demonstram a imortalidade; é na presença de certos mortos ilustres que sentimos mais distintamente os destinos divinos dessas inteligências que atravessam a terra para sofrer e para se purificar e que o homem pára e pensa e então diz a si mesmo que é impossível que aqueles que foram gênios durante a vida não se transformem em almas depois da morte!

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo quinto post da Série “Era uma vez… uma editora“.

23. Um sobressalto nos anos 90: ou a arte de cair para cima

Por Ivan Pinheiro Machado*

No final da década de 1990, o modelo de editora que colocamos em prática lá nos paleolíticos anos 70 começou a dar sinais de fadiga. A L&PM tinha cumprido um ciclo de 20 anos e penava indefinidamente num ambiente econômico adverso. Sem capital de giro (éramos muito jovens e muito duros quando fundamos a editora), tínhamos atravessado ditadura, crises econômicas, inflação de até 80% e 4 moedas; a saber: Cruzeiro, Cruzeiro Novo, Cruzado, Cruzado Novo, até chegarmos –  estropiados –  no Real. Era um momento de grande aperto fiscal e os juros eram exorbitantes. Dependentes dos bancos, sofríamos com juros escorchantes. E para piorar o cenário, grandes grupos editoriais nacionais e estrangeiros se movimentavam com grande poderio econômico e acirravam a concorrência pelos grandes autores. Estávamos extremamente fragilizados economicamente. E no meio da crise, como um boxeador cambaleando no meio do ringue, quase “jogamos a toalha”, o que no boxe significa desistir, encerrar a luta. A prova disso é que, em 1996, a L&PM esteve à venda pelo valor simbólico de um Real. Ou seja, se alguém quisesse, entregávamos a editora pelo valor da dívida.

Ninguém apareceu. Foi nesta época de incertezas que conhecemos um economista inglês, casado com uma brasileira e com um escritório de consultoria empresarial estabelecido no Rio de Janeiro. Chamava-se Ken Baxter. Morreu muito jovem, aos 50 anos, e deixou saudades entre os seus amigos. Ken era uma pessoa extraordinária. Interessou-se pelos nossos imensos problemas e foi, juntamente com os advogados José Antonio Pinheiro Machado, Elias Guerra e Fernando Carvalho, decisivo na nossa recuperação. Debaixo desta tempestade, decidimos que íamos lutar para sobreviver. E a primeira coisa a fazer, era… mudar. Quem não tem dinheiro, tem que ter ideias. Foi aí que decidimos concentrar nossa imaginação e nossa energia no projeto L&PM POCKET. Ken e nossos advogados “blindariam” a editora contra um pedido de falência. Enquanto isso, trabalharíamos 20 horas por dia para materializar a ideia dos livros de bolso.

Foi assim que tudo começou. Enquanto o “mercado” previa o eminente naufrágio da L&PM, a magnífica logística de distribuição da coleção POCKET foi sendo montada cuidadosa e vertiginosamente. Era uma corrida contra o tempo. Precisávamos de eficiência empresarial para implantar um sólido projeto cultural. Muitos foram os que nos ajudaram. Os autores, quase na sua totalidade, se mantiveram solidários, especialmente o grande escritor Sergio Faraco, que chegou a dar expediente na L&PM, chamando novos autores e editando antologias de autores clássicos para a Coleção Pocket. Foi criado um anel de solidariedades que nos protegeu e nos deu forças. Neste ambiente de incerteza, repito, nosso amigo Ken foi fundamental. Ele acreditou sempre e tinha uma fé impressionante que a coleção de livros de bolso “salvaria” a editora.

Fomos voltando das cinzas e, devagar, conseguimos retomar e ampliar ainda mais o nosso espaço, conquistando milhares de leitores. Hoje, temos mais de 2 mil livros ativos em catálogo. Neste mês, entre 18 lançamentos, a L&PM estará lançando o livro “Mulheres” de Charles Bukowski.  Volume número 950 da coleção L&PM POCKET, líder de mercado e a maior coleção de livros de bolso do Brasil.

*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo terceiro post da Série “Era uma vez… uma editora“.

20. O “cara” (ou o chato) do Balzac

Por Ivan Pinheiro Machado*

Um dia, estava numa livraria num Shopping em Porto Alegre e uma senhora de uns 60 anos, especialmente bem vestida, aproximou-se, pediu licença e perguntou com uma informalidade em nada condizente com sua sóbria vestimenta e sua idade: “O senhor é o “cara” do Balzac?”. Rindo, respondi alguma coisa e fui saindo… A verdade é que a senhora tinha razão. Por curiosas razões, acabei me transformando em uma espécie de “amador aprofundado” na vida e obra de Honoré de Balzac. Vou contar como e porque aconteceu isso:

Em 2004, dentro do projeto editorial da Coleção L&PM POCKET decidimos publicar as principais histórias da Comédia Humana já que, há muito tempo, ela não se encontrava nas livrarias os romances de Balzac. As 100 histórias (novelas, romances e contos) que compõem a Comédia Humana foram editadas no Brasil pela editora Globo na década de 1940 numa edição capitaneada por Paulo Rónai. Na década de 1980, houve uma reedição dos 17 volumes da Comédia Humana. Logo esgotaram-se os exemplares e nunca mais se ouviu falar dos romances do Balzac. Nas livrarias, só eram encontrados volumes dispersos e geralmente os factuais, livros que ele escreveu sobre a imprensa, “teoria do andar” e alguns ensaios sobre comportamento e política. Ilusões Perdidas, Pai Goriot, Esplendores e misérias das cortesãs, o célebre Mulher de 30 anos, O lírio do Vale, Pele de Onagro, só para citar alguns, apenas eram encontrados em sebos e olhe lá! Pois nós decidimos recolocar o grande Honoré nas livrarias. Mais precisamente na nossa coleção de bolso e em novas traduções feitas pelos melhores tradutores disponíveis no mercado editorial. Pois por melhor que fossem as traduções da edição da Globo, eram traduções datadas. O que, aliás, era normal, já tinham sido feitas na década de 1940.

Uma vez tomada a resolução, por onde começar? Primeiro, tentamos um contato com a Globo. Quem sabe comprar as traduções e revisá-las? Fomos informados de que era impossível negociar ou republicar a “Comédia” devido a questões jurídicas. Pensei em consultar algum especialista que pudesse me dar um roteiro de publicação, uma ordem de importância. Perguntei em Porto Alegre, São Paulo, Rio… e nada. Poucos nomes me foram sugeridos, todos indisponíveis. Tentei nas universidades, fui atrás de “balzaquistas”, mas acabei dando sempre com a cara na porta. Foi então que – na falta dos especialistas, resolvi eu mesmo, exercendo meu ofício de editor, mergulhar no mundo impressionante do inventor do romance moderno. Ou seja, resolvi abraçar Balzac. E me pus a ler. Compramos aqui na editora uma edição da Plêiade, da Gallimard, para ter o Balzac no original e nos sebos, reunimos a edição dos 17 volumes da Globo, capa dura, da década de 1950. E me pus a ler, ler, ler, quase pirei. Saí atrás de textos sobre Balzac. Procurei raridades em Paris, o livro de Teophile Gautier, o ensaio de Baudelaire, o livro de Alain, a biografia escrita por Stefan Zweig, a escrita por Maurois, outras mais, enfim, viajei. Foram cerca de 40 romances e novelas, uns 15 contos do Balzac e mais uns 20 livros sobre ele, além de meia dúzia de biografias. Quase virei um chato.

Um dia, num evento literário na Livraria Cultura em Porto Alegre, promovido pela Aliança Francesa, fui convidado a falar sobre Balzac. Era eu e o professor Voltaire Schilling, um homem de vasto saber. Cada um tinha um tempo determinado para falar. O prefessor Voltaire fez uma bela explanação sobre a relação entre Balzac e Paris. Falou uns trinta minutos e me passou a bola. Fiz um perfil biográfico rápido de Balzac, citei seus livros principais e – como curiosidade – falei sobre a “diversidade sexual” em Balzac, ou seja, vários de seus livros contemplam todas as tribos, da homossexualidade masculina, feminina, viciados em sexo, polígamos, cortesãs insaciáveis e até zoofilia. Enfim, comecei a contar histórias, passagens, falar sobre a Comédia Humana, seus personagens que se entrecruzam, e fui falando, falando, até que o francês da Aliança Francesa, sentado entre eu e o professor Voltaire (que tinha colocado na minha frente vários papeizinhos, que eu nem notei) agarrou-se no meu braço e sussurou no meu ouvido: “Chega!”. Eu, espantado, interrompi em meio à frase em que eu falava dos estonteantes atributos físicos da Condessa de Langeais… Ele me tomou o microfone e disse. “Muito obrrrrigado a todos! Assim encerramos nosso ciclo sobrrrrre Balzac”.  Em tempo: os tais papeizinhos que eu não li, diziam o seguinte: “Faltam dois minutos”, outro dizia “Um minuto” e outro “Tempo encerrado, faça a conclusão”…

Para ler o próximo post da série “Era uma vez uma editora…” clique aqui.

19. O perigoso ofício de editor

Por Ivan Pinheiro Machado*

Todo editor com alguma presença no mercado sofre um assédio diário por parte de escritores novos ou nem tanto. É um lado estranho da profissão, pois temos que administrar a absoluta impossibilidade de publicar 99,9% do que nos é oferecido, tendo o cuidado de não fulminar sonhos, ilusões e, por que não, vocações. As editoras mais atuantes do mercado, sem exceção, têm o seu projeto editorial. Em cada uma delas, há um grupo de profissionais que faz a prospecção de novos títulos. Sempre dentro de uma ideia de conjunto de lançamentos e respeitando as séries, as grandes coleções e finalmente aquilo que chamamos a “cara” da editora ou, falando sério, a filosofia da editora. Ou seja, não se faz uma projeto de programação anual esperando que chegue algum original genial pelo correio ou, modernamente, num PDF via e-mail. Não. O projeto editorial de uma editora de respeito é sempre previamente traçado e a busca de títulos obedece a critérios rigorosos, tanto comerciais, como culturais. E isto, obviamente, não impede que sejam descobertos autores inéditos.

Mas há, de parte de muita gente, a ideia de que o editor TEM que ler o seu livro, TEM que publicar seus primeiros poemas. Alguns autores não admitem a recusa. Acham que uma editora comercial é uma fundação sem fins lucrativos. Enquanto que, na verdade, uma editora é um negócio como outro qualquer; tem dezenas, às vezes centenas, de funcionários, investe em matéria-prima, equipamento, tecnologia, marketing dos autores, prestadores de serviço, etc, etc. Ou seja, uma editora tem que ter resultado comercial para poder pagar seus escritores, fornecedores e sobreviver como negócio. Dito isto, vou contar uma pequena fábula sobre o perigosíssimo ofício de editor:

Um punhal surge do escuro

Foi lá pelo começo dos anos 1990. Um jovem poeta, conhecido meu e filho de uma pessoa de muito prestígio na cidade, ligava insistentemente pedindo para falar comigo. Eu, sabendo o motivo do telefonema, instruía minha secretária a dizer que não estava para ver se o cara percebia que eu não queria falar. Mas ele insistiu, insistiu tanto, que eu acabei atendendo. Ele queria publicar os seus poemas para a Feira do Livro de Porto Alegre daquele ano. Eu expliquei que não estávamos fazendo livros de poesia, que a Feira do Livro estava muito em cima da hora (dois meses) e que – ele me perdoasse – mas era comercialmente muito complicado publicar poetas estreantes, etc. etc. Então ele pediu que, pelo menos, eu lesse os poemas dele. E se despediu bastante aborrecido. Prometi que leria seu precioso livro. E cumpri. Li os primeiros três poemas. Eram tão primários, infantis (o cara tinha uns 35 anos) que parei de ler e esqueci do assunto. Nossa sede era um sobrado na aprazível rua Nova York no bairro Higienópolis em Porto Alegre. Um dia de inverno, fiquei trabalhando até mais tarde e fui o último a sair, já noite fechada. Meu carro estava estacionado em frente à editora. Distraído, eu fechava o portão, quando uma sombra saltou de trás de uma árvore. Meu coração disparou, pois imaginei um assalto. O vulto aproximou-se e a luz do poste de iluminação da rua fez com que rebrilhasse uma faca com uma lâmina de mais ou menos um palmo de comprimento. Parei aterrorizado. Quando consegui tirar os olhos da faca e olhar na cara do sujeito vi que era ninguém menos do que… o poeta. Seus olhos faiscavam. “Agora terás que me dizer por que não vais publicar meus poemas!!!”

Dei dois passos para trás. Fiquei com vontade de correr, afinal, como dizia o personagem de Albert Finney em “À sombra do vulcão”(de John Huston), aquela seria “uma forma estúpida de morrer”. Mas correr seria uma imensa humilhação. Aos poucos, retomei a coragem e falei mansamente, sempre cuidando aquela lâmina ameaçadora. “Calma fulano (perdoem, mas não posso dizer o nome do cara), quem é que disse que eu não vou publicar o teu livro?”. Ele parou, fez um ar de espanto e deixou cair os braços. Ficou olhando aparvalhado para a faca e dizia baixinho: “o que que eu estou fazendo”. Enquanto ele fazia esta reflexão, eu saltei prá dentro do meu carro e saí cantando pneu. O coração batia na boca. Nunca mais vi o poeta. Pra dizer a verdade, nunca mais ouvi falar do poeta. Mas, para todos os efeitos, sempre que saio da editora mais tarde, anoitecendo – até hoje – sempre olho para os lados. Pode aparecer um assaltante, é verdade, mas aprendi a tomar cuidado, sobretudo, com os poetas incompreendidos.

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18. Roberto Marinho e Prestes com exclusividade na TV Bandeirantes

No dia 7 de março de 1990, aos 92 anos, morria Luís Carlos Prestes. Para marcar a data, o post da Série Era uma vez… uma editora desta semana será publicado excepcionalmente na segunda-feira e não na terça-feira.

Por Ivan Pinheiro Machado*

Paulo Perdigão, falecido em 2009, foi um dos grandes jornalistas e intelectuais brasileiros. Ganhava a vida programando os filmes da TV Globo e escrevendo sobre cinema no jornal O Globo. Mas escreveu um clássico da cultura brasileira, “Anatomia de uma Derrota”, o livro definitivo sobre a derrota do Brasil para o Uruguai na Copa de 1950. Este livro originou o premiado curta “Barbosa”, de Jorge Furtado. E mais: ele traduziu o livro intraduzível de Jean-Paul Sartre “O ser e o nada”. Pois bem. Perdigão era meu amigo e tinha quatro grandes obsessões intelectuais –  aliás, famosas entre os seus amigos –, a saber: Sartre, a final da copa de 1950, o filme “Shane” e a Rádio Nacional. Nós, da L&PM, editamos a maior parte de suas obsessões; um livro sobre o pensador francês, “Existência e liberdade”; o seu clássico sobre a Copa de 50, “Anatomia de uma derrota” e o livro sobre “Shane” (em português, “Os Brutos também amam”) cujo título era “Western Clássico”. Pois esta história começa quando Perdigão lançava justamente seu livro “Western Clássico” no terceiro andar do Shopping da Gávea no Rio de Janeiro. Uma quinta-feira de outubro, livraria “Timbre”. O ano era 1985 (início do primeiro governo democrático depois de 21 anos de ditadura). Estava muito calor e houve um problema de falta de luz que abalou o ar-condicionado. Às 8 da noite, já havia uma fila razoável de amigos e admiradores de Perdigão e resolvi dar uma volta pelo Shopping para refrescar. Ao chegar no primeiro andar, onde havia uma outra livraria (não lembro o nome), notei um certo burburinho, luz de TV, gente que parava e olhava para o interior da loja. Cheguei perto e vi que lá estava Luís Carlos Prestes, o “Cavaleiro da Esperança”, maior líder comunista do país.

Antonio Pinheiro Machado Netto, pai de Ivan Pinheiro Machado, e Luís Carlos Prestes

Eu havia conhecido Prestes em Porto Alegre, pois meu pai, ex-deputado do PCB na Constituinte de 1946 (cassado em 1947), era seu amigo. Pensei em chegar perto, me identificar e trocar umas palavras com o grande chefe da Coluna Prestes. Quando pensei em me aproximar, notei outro burburinho. Parei. Entrava na pequena e super-lotada loja o Dr. Roberto Marinho e sua esposa Lili Marinho. Velhos conhecidos, contemporâneos de juventude, política e história, Roberto Marinho soube que Prestes autografaria um livro coletivo sobre a Coluna Prestes e foi até a Gávea abraçá-lo. Parecia um encontro surreal. Os opostos se abraçando. Eu e todos os que ali estavam, na maioria simpatizantes de Prestes, velhos comunistas, jovens ativistas, pararam curiosos a observar aquela cena. Ouvia-se o zumbido de uma mosca na livraria. Um cinegrafista de TV e seu “pau de luz”, consciente da preciosidade da cena, acompanhava meticulosamente aquele encontro. Roberto Marinho falava com Prestes e olhava curioso para o cinegrafista, até que não resistiu e perguntou:

– O senhor é da nossa TV?

O cinegrafista meio sem jeito respondeu:

– Desculpe Dr. Roberto, mas eu sou da Bandeirantes…

– Não tem ninguém da Globo aí? Insistiu Roberto Marinho.

– Só estou eu aqui, Dr. Roberto. Desculpou-se o cinegrafista.

– Então, meu filho, por favor, filme eu e o Prestes, pois eu vou mandar pedir a fita pro Saad, já que não veio ninguém da Globo…

No outro dia, o Jornal Nacional apresentou em grande destaque o encontro entre Roberto Marinho e Luís Carlos Prestes, “velhos amigos”, segundo disse Dr. Roberto em seu depoimento ao repórter. Abaixo, no vídeo, se lia, “imagens gentilmente cedidas pela TV Bandeirantes”. Diz a lenda que Roberto Marinho interpelou pessoalmente a chefia de reportagem perguntando furioso: “Vocês querem ser mais realistas do que o rei?”.

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17. “Quando Brad Pitt fez o meu papel…”

*Por Ivan Pinheiro Machado

Heinrich Harrer estava muito à vontade naquele belo salão no Frankfurter Hoff, melhor hotel de Frankfurt e um dos mais aristocráticos da Alemanha. Na Feira Internacional do Livro de Frankfurt de 1999, ele curtia o incrível êxito internacional do seu livro “Sete anos no Tibet”, publicado com sucesso há mais de 45 anos e que acabara de ser subitamente re-catapultado à categoria de best-seller graças à  badalação em torno do recém-lançado filme de Jean-Jacques Annaud. Seu agente, Paul Marsh, falecido em 2009, organizara um coquetel convidando os editores dos quase 80 países que publicavam o livro (foi traduzido em 53 idiomas e, em 1954, quando lançado nos Estados Unidos foi best-seller com mais de 3 milhões de livros vendidos). Eu estava lá como editor brasileiro de Harrer. Ele tinha recém completado seus 86 anos e conversava individualmente com todos os editores presentes no coquetel. Quando chegou a minha vez, ele foi especialmente simpático ao saber que eu era brasileiro. Fez várias perguntas a respeito da realidade do país e me contou rapidamente a incrível aventura que ele viveu na Amazônia. Mr. Harrer decididamente não gostava de uma vida pacata. Depois de fugir de uma prisão na Índia, de atravessar o Himalaia a pé e passar sete anos no Tibet, decidiu explorar a  misteriosa Amazônia. Foi no ano de 1957 e, acompanhado de seu amigo, o príncipe Leopoldo III da Bélgica, subiu de barco o rio Amazonas até próximo de sua nascente no Peru. A aventura durou sete meses e ele pegou uma malária que, segundo disse “me acompanha até hoje”. Mais que a aventura amazonense de Mr. Harrer,  marcou-me uma frase sua a respeito do filme: “O Brad Pitt fez muito bem o meu papel. Não reclamo. A única restrição é que ele está muito sério e eu era mais expansivo…” Que tal?

Cena do filme “Sete anos no Tibet”

Pra quem já esqueceu, Harrer/Brad Pitt era alemão e chegou ao Tibet fugido de um campo de prisioneiros inglês na Índia em 1945. Lá, ele conheceu o jovem 14º Dalai Lama de quem foi durante sete anos uma espécie de tutor, ensinando línguas, geografia e relações com o Ocidente. O livro e o filme contam a estadia tibetana de Harrer encarnado por Brad Pitt. Dalai Lama está vivo (e bem vivo) defendendo a causa da independência tibetana. Heinrich Harrer foi também um grande defensor da causa e morreu em 2006 aos 93 anos na Áustria.

Harrer e o Dalai Lama

Na década de 1940, Heinrich Harrer foi um dos grandes esportistas alemães, atleta olímpico em esportes de inverno e alpinista famoso, tendo escalado grandes montanhas no Alasca, nos Andes, na África, Nova Guiné, Europa e Ásia. Seu nome, como esportista, chegou a ser explorado na propaganda do regime de Adolph Hitler. Mais tarde, ele reconheceu que cometera um grande erro, permitindo que associassem o seu nome ao nazismo e, logo após a guerra, Harrer reconheceu o mal que Hitler causou ao mundo.

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