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16. Millôr Fernandes vai ao pampa

*Por Ivan Pinheiro Machado

No início dos anos 80, Millôr Fernandes e seu amigo, o fotógrafo Yllen Kerr (já falecido e conhecido como o homem que criou a moda de correr na beira da praia no Rio de Janeiro) vieram a Porto Alegre para uma excursão às fronteiras vazias dos pampas. Nosso amigo Paulo Odone Ribeiro, que mais tarde seria deputado e presidente do Grêmio Foot-ball Portoalegrense, havia convidado a dupla carioca para passar a Semana Santa na sua fazenda, na fronteira com a Argentina, município de São Borja, um dos legendários Sete Povos das Missões. O Paulo Lima, eu – já editores do Millôr – e nossas respectivas mulheres da época, em dois carros Alfa Romeo Ti4 2300, levaríamos o pessoal. Naquele tempo, as Alfas eram fabricadas no Brasil e tinham um tanque de gasolina de 100 litros. É importantíssimo que os jovens saibam que, para economizar gasolina, era proibido por lei vender o precioso combustível em fins de semana e feriados (viram como é bom ditadura?). Como eram 700 quilômetros de Porto Alegre até a Fazenda Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e iríamos na Sexta-feira Santa, tínhamos que ter autonomia de combustível, pois não poderíamos reabastecer no caminho.

Naquele tempo, no interiorzão, não havia rede de eletricidade. A luz chegava através de um motor movido a óleo diesel, que era ligado ao anoitecer e desligado logo depois do jantar. Isto quer dizer que não havia televisão, nem o mundo era globalizado. Depois de 12 horas de viagem, chegamos na fazenda num final de tarde cinematográfico. Um verdadeiro céu “de aerógrafo”, como disse o Millôr na ocasião. Para abrir a porteira da estância veio um peão de bombachas, camiseta regata branca, palito nos dentes, sandálias havaianas com esporas atadas ao pé (esporas no “garrão”, como se diz na fronteira) e, naturalmente, um reluzente 38 cano longo na cintura. Andamos uma centena de metros até a sede da estância, fomos recebidos pelo Odone e sua mulher Niúra que nos levaram imediatamente para o galpão, centro nevrálgico de uma fazenda gaúcha. O galpão é basicamente o local onde fica o pessoal de serviço. Ali está o fogo de lenha de coronilha que jamais se apaga: esquenta a água do chimarrão, cozinha o assado e aquece o pessoal nas madrugadas frias. No Rio Grande, o galpão é cultuado como o lugar de socialização, onde rolam as conversas, os causos, enquanto o chimarrão roda de mão em mão. Pois sentamos. A peonada vestida a caráter, quieta, só observava aquela conversa animada e se divertia com o sotaque carioca dos visitantes. Subitamente, um daqueles peões aponta para o Millôr e pergunta naquele sotaque fronteiriço, quase puxado para um portunhol:

– O senhor é do Rio de Janeiro?

– Sim sou, respondeu simpaticamente o Millôr.

E o peão tascou sem rodeios:

– Conhece o Moreira?

Houve um silencio perplexo.

– Um gordo!– arrematou, fazendo um gesto com os braços que indicavam uma barriga acentuada.

– Mas… – gaguejou Millôr Fernandes espantado – o Rio é muito grande…

– Mas o Moreira é um tipaço – disse o homem –, onde ele chega todo mundo já conhece pela prosa. Ele não para de falar!

O Millôr pensou, pensou e resolveu sair-se diplomaticamente:

– Sabe, não estou me lembrando do Moreira…

Millôr de bombachas

Millôr Fernandes “pilchado” em 1979 – Foto: Ivan Pinheiro Machado

Para confirmar visualmente a história que narro a seguir, vocês podem ver Millôr Fernandes totalmente “pilchado”, como um autêntico gaúcho. Botas, bombachas, chapéu de aba larga, lenço no pescoço e a fundamental guaiaca, que é o cinturão que abriga o revólver e as facas. Em poucos dias, o grande intelectual carioca parecia um autêntico habitante dos pampas do extremo meridional brasileiro. Yllen Kerr, jornalista, fotógrafo, apreciador de esportes radicais e corredor de rua, causou furor entre a peonada ao montar de forma impecável um dos cavalos tidos como dos mais “brabos” do plantel. Yllen tinha servido no exército, na Cavalaria, e tinha grande perícia para dominar um cavalo.

No começo da tarde do domingo, estávamos todos vestidos desta forma radical, quando fomos convidados para acompanhar e peonada até a fazenda vizinha onde haveria carreiras (de cavalos) numa cancha reta. Era o grande programa domingueiro na região. Estávamos nos preparando para entrar na camionete, quando o velho peão que nos guiava apontou para a arma que Millôr levava (descarregada, naturalmente):

– O senhor vai levar a arma?

– Acho que vou, disse o Millôr, rindo, mas sem muita convicção.

– Pretende usar? Perguntou o peão.

– Claro que não!

– Então não leve.

E encerrou o assunto. Na fronteira, cancha reta e revólver são assuntos muito sérios…

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15. O Analista de Bagé

Por Ivan Pinheiro Machado*

“O Analista de Bagé”, de Luis Fernando Veríssimo, despontou para a fama e a glória na Feira do Livro de Porto Alegre de 1981. Em meio a uma onda de Sidney Sheldon, Morris West e Harold Robbins, o livro de um autor praticamente desconhecido no eixo Rio-São Paulo surgia como o mais vendido na Feira. Numa daquelas tardes animadas na Praça da Alfândega, eu estava na barraca da L&PM conversando sobre amenidades com a repórter do Jornal do Brasil Cláudia Nocchi quando ela me interrompeu.

Você já notou que, enquanto falamos, três clientes compraram o “Analista de Bagé”?

E era verdade. Estava vendendo muito. Tínhamos feito uma edição de 3 mil exemplares que se esgotara na primeira semana da Feira. Reeditamos rapidamente e “O Analista” já era o mais vendido segundo a lista que a Câmara Riograndense do Livro distribuía todos os dias. E cada vez vendia mais. Cláudia ficou impressionada e resolveu sugerir ao Rio de Janeiro uma matéria sobre o novo fenômeno editorial. O editor do Jornal do Brasil era o gaúcho Raul Riff e, seu filho Sergio Riff, era repórter do Caderno B. No começo dos anos 80, o Caderno B do Jornal do Brasil era a verdadeira bíblia da cultura brasileira. Saía no JB, todo mundo ficava sabendo. E não deu outra. Se houve ou não lobby gaúcho, não sei. Mas, no fim de semana seguinte, o “Analista” deu capa do caderno B, com matéria da Cláudia, resenha do Sergio Riff e até uma enorme caricatura do Luis Fernando ilustrando a página. Um mês depois, o livro já era o mais vendido no país. Aí foi a vez da Veja. Matéria de capa. E olha que poucas vezes um livro deu capa da Veja. Foi a consagração. E durante dois anos “O Analista de Bagé” foi o livro mais vendido em todas as listas de bestsellers dos jornais e revistas brasileiros.

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10. Bukowski levanta o tapete e mostra a sujeira

Por Ivan Pinheiro Machado*

Charles Bukowski é publicado pela L&PM há quase três décadas. É por isso que o velho safado é super-identificado com a editora que publicou até agora quinze livros seus, incluindo “Delírios Cotidianos”, a bela adaptação de seus contos para HQ feita pelo desenhista alemão Mathias Schultheiss. Nesse ano de 2011, vamos publicar finalmente os seus primeiros romances, “Cartas na rua” e o incensado “Mulheres”. Aí teremos em nosso catálogo todos os seus romances, os principais livros de contos, alguns de suas melhores obras de poemas e o antológico “diário” publicado postumamente: “O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio”. Bukowski conquistou a admiração dos jovens de várias gerações; daqueles que são jovens há muito tempo e daqueles que são jovens recentemente. Esta permanência no coração dos leitores se deve a uma obra descarnada, sobre a qual paira a irresistível aura de transgressão. Há malucos que se tornam santos com o passar do tempo como Van Gogh, Rimbaud, Baudelaire, Artaud, Thoureau, Kerouac, Bukowski, entre dezenas de outros. E esta maravilhosa capacidade da juventude de cultuar aqueles que descarrilham dos trilhos do sistema transforma artistas marginalizados em clássicos. Desde que morreu, em 1994, a obra de Heinrich Karl Bukowski, dito Charles Bukowski, tem corrido o mundo. O bêbado inconveniente capaz de performances desastrosas, completamente embriagado em frente às câmeras da TV, passou a ser respeitado.

O lado sombrio do sonho americano

Nasceu na Alemanha e criou-se nos EUA, filho de um militar de origem alemã que lhe aplicava surras terríveis. Sua prosa e seus poemas “cortam como aço de navalha” e sua obra sistematicamente é o contraponto brutal ao “american way of life”. Foi 1982 que ouvimos falar de Charles Bukowski aqui na L&PM. Curiosamente, ele começava a fazer sucesso na Itália e a agente literária Ana Maria Santeiro, que representava a agência Carmen Balcells no Brasil, me passou um exemplar do livro “Erections, ejaculations, exhibitions and general tales of ordinary madness”. Fiquei perplexo com o título e fascinado com a violência dos contos. Na mesma época, o cineasta italiano Marco Ferreri fez um filme baseado no livro que chamava-se “Crônica de um amor louco”(em italiano “Storie di Ordinaria Folia”), com Ben Gazzara e a maravilhosa Ornella Muti que fazia o papel da “mulher mais linda da cidade”, um dos contos do livro. Rapidamente, a fama do filme espalhou-se e ele virou um verdadeiro “cult” da contra-cultura. Nós compramos os direitos do livro para o Brasil e o publicamos em dois volumes; o primeiro com o título do filme “Crônica de um amor louco” e no segundo adaptamos o título original para “Fabulário geral do delírio cotidiano”. Até hoje publicamos estes livros, agora na Coleção Pocket.

Em 1986, eu estava na Feira Internacional de Frankfurt com o dublê de jornalista e historiador Eduardo Bueno (que na época trabalhava na L&PM) quando conhecemos John Martin, o dono da legendária Black Sparrow, que publicou todos livros do velho Buk, com exceção de “Erections, ejaculations…” que saiu pela editora e livraria City Lights de San Francisco, pertencente até hoje ao poeta beat Lawrence Ferlinghetti. Martin era um grande editor. Foi ele que percebeu o talento de Bukowski e estimulou-o a largar o emprego nos correios e dedicar-se a literatura. Hoje, quase todos os seus livros estão na Coleção L&PM POCKET e o baixo preço é um apelo a mais para que os jovens o leiam. Bukowski não perdoa, não alivia. É sempre violento, irreverente, não tem nenhuma ilusão. É bom que os jovens o leiam. Ele é uma alternativa ao mundo idealizado que virou moda depois da vitória final da civilização do dinheiro e da globalização. Bukowski escancara o lado sombrio da nossa sociedade. Ele levanta o tapete e mostra a sujeira. É a voz dos desvalidos, dos perdedores, dos desempregados, dos doentes, dos falidos, dos feios, das putas, dos bêbados. Não tem nenhum charme, mas a violência que jorra das suas páginas é tão verdadeira que não tem como ficar indiferente.

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9. Um brinde com Woody Allen

Por Ivan Pinheiro Machado*

Quando publicamos Cuca Fundida, em 1978, Woody Allen ainda não era Woody Allen. Se é que me entendem. Só no ano seguinte ele ganharia todos os Oscars a que tinha direito com seu consagradíssimo “Annie Hall”, que no Brasil foi pateticamente batizado de “Noivo neurótico, noiva nervosa”. O livro foi uma indicação de Luis Fernando Veríssimo, sempre muito bem informado sobre literatura americana. Além disso, houve o acaso de eu encontrar em Frankfurt, na Feira de 1977, o agente de Allen. Avalizado pelo então editor da Nova Fronteira, Roberto Rieth Correa, fizemos o segundo contrato internacional da L&PM. Ruy Castro foi o tradutor e lançamos Cuca Fundida no final de 1978. Em março do ano seguinte, Woody Allen foi “Oscarizado” e o livro decolou na lista dos mais vendidos. Depois disso, editamos Sem Plumas e Que Loucura!, hoje reeditados na Coleção L&PM Pocket, e mais os roteiros Manhattan e Play it again Sam, as peças de teatro Lâmpada Flutuante e Adultérios e um livro em quadrinhos, O nada e mais alguma coisa. O Paulo Lima, que como vocês sabem é o “L” da L&PM, estava em Nova York no final dos anos 80 e resolveu arriscar uma segunda-feira no Michael’s, um tradicional pub na 55th Street (East side), onde Woody Allen costuma (ou costumava) tocar seu clarinete acompanhado de sua banda. O Lima é um cara de sorte, habitué de N. York (veja o post em que ele abafou no Limelight como sósia do Spielberg) e achou que era uma noite propícia para o Woody aparecer por lá. Ele nunca avisa quando vai, mas se for, é sempre numa segunda-feira. Não deu outra. Paulo Lima estava recém brindando com sua jovem companhia, quando o astro surgiu no palco. Tocou cerca de uma hora e, em seguida, foi jantar num lugar mais ou menos protegido dos curiosos, no próprio restaurante. Paulo Lima não confessa, mas tenho certeza de que ele quis impressionar sua companhia. Levantou-se e para espanto da moça ele disse “Vou lá bater um papo como o Woody Allen”. Ela gaguejou: “mas e os seguranças?” (havia um par de trogloditas de 2 metros e meio de altura impedindo a aproximação dos curiosos). “Deixa comigo” sussurrou o Lima. E foi na direção da mesa onde Woody Allen jantava com Mia Farrow e um casal de amigos, Kirk Douglas e sua mulher. Quando o gorila deu um passo para impedir que prosseguisse, Paulo Lima, no seu impecável inglês de Cambridge falou alto “sou o editor brasileiro de Mr. Allen”. Ele ouviu, virou-se e, vendo Lima luzindo no seu terno preto e gravata Hermés, pediu que ele passasse. Afinal, era o seu editor e, nos países civilizados, esta é uma profissão importante. Lima conversou rapidamente, apresentou-se, fez uns poucos comentários e pediu para o garçom 5 taças de Dom Perignon ano 1963 para um brinde com Woody, senhora e seus convidados. A seguir, cumprimentou-os e retirou-se para a sua mesa, olhado com inveja e admiração por todo o Michael’s. Na mesa, sua jovem acompanhante estava perplexa e encantada com aquela contundente demonstração de prestígio…

Abaixo, você pode conhecer o Michael´s Pub em um vídeo que mostra Woody Allen tocando ao lado Eddy Davis:

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8. Spielberg por uma noite

Por Ivan Pinheiro Machado*

No final dos anos 90, o Paulo Lima, o “L” da L&PM, meu parceiro há muitas décadas, estava em Nova York para a feira anual da American Booksellers Associations. Pra quem não conhece, o Paulo Lima é um homem elegante, com um nariz levemente pronunciado, barba bem esculpida e usa óculos. E nesta noite, em Nova York, ele estava acompanhado do nosso amigo comum Flavio Torriani e algumas amigas brasileiras e americanas. Estavam numa limusine, daquelas cinematográficas, que tem uns 150 metros, obviamente de terno escuro, e rumavam para o SoHo para rodopiar na pista fashion do Limelight, o célebre night club novaiorquino albergado numa velha igreja estilo medieval. A limusine parou em frente a boite. Em Nova York, a tradição das baladas é deixar uns caras enormes em frente aos dancings, dizendo quem pode e quem não pode entrar. Óbvio que tudo parou para que o pessoal da “limo” pudesse entrar na festa. E desceram belas mulheres e… alguém murmurou, “Mr. Spielberg!!”. Foi uma correria. Os caras estão habituados a montar um esquema especial de segurança quando aparece alguma celebridade. E Paulo Lima, que é igual a Mr. Spielberg, acenou levemente para a multidão que se acumulava em frente ao Limelight. Foram conduzidos para a melhor mesa da casa. Ele deu alguns autógrafos e depois pediu para que os seguranças cuidassem para que não fosse mais importunado…

Steven Spielberg e Paulo Lima – Separados no nascimento?

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5. Frankfurt: onde o mundo dos livros se encontra

Por Ivan Pinheiro Machado*

A Feira Internacional de Frankfurt faz parte da vida dos editores de todo o mundo. Ela funciona no seu atual formato desde o final da Segunda Guerra e é a maior feira de negócios de direitos autorais do planeta. E tradição é o que não falta ao local: foi há poucos quilômetros de Frankfurt, no século XV, que Johannes Gutenberg inventou os tipos móveis, causando a grande revolução da imprensa. A partir do seu invento, os livros e os jornais poderiam ser impressos aos milhares. Mas voltemos à Feira. São mais de 30 hectares de pavilhões interligados por esteiras rolantes onde se reúnem cerca de 7 mil expositores de 200 países. Apesar destes números impressionantes, mais da metade da Feira de Frankfurt é ocupada por seis países: Grã Bretanha, Estados Unidos, Alemanha, França, Espanha e Itália. E destes seis, EUA, Grã Bretanha e Alemanha comparecem com quase 3 mil expositores. Na pré-história, ou seja, na era pré-fax e pré-internet, era lá que se aceleravam os negócios. Até meados da década de 80, seguindo o time dos correios, para adquirir os direitos autorais de um livro, se levava em média uns quatro, cinco meses. Hoje, numa eficiente troca de e-mails com um agente literário, é feita proposta, contraproposta e pode se fechar um negócio numa manhã. Naqueles tempos bem mais vagarosos, nós chegávamos em Frankfurt com a mala abarrotada de contratos e pendências. Era lá que tudo se resolvia. Minha primeira Feira foi em 1976. Naquela época havia sempre um “tema” que concentrava as atividades culturais (a partir de 1990, devido a confusões políticas e religiosas, foram extintos os “temas”, e o centro cultural do evento passou a girar em torno de um país homenageado). Naquele ano, foi “Literatura latino-americana”. Eu tinha 24 anos. Meu amigo Fernando Gasparian, dono da editora Paz e Terra, falecido no ano passado, me apresentou para um jovem e promissor escritor uruguaio, Eduardo Galeano, seu editado. Trinta e dois anos depois, Galeano é uma celebridade internacional e toda a sua obra é agora publicada pela L&PM. “Veias abertas da América Latina”, seu grande bestseller, foi relançado há pouco em versão convencional e pocket, com nova tradução de Sergio Faraco. Lembro muito bem daquela Feira e do grande debate sobre o “Literatura Latino-americana”. Na platéia do enorme auditório, havia mais de duas mil pessoas. Na mesa estavam Mario Vargas Llosa, Gabriel Garcia Marquez, José Donoso, Jorge Amado, Mario Benedetti, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Augusto Roa Bastos, entre outros. Jorge Luis Borges declinara do convite porque havia muito comunista…

Vista de um dos pavilhões da Feira de Frankfurt – Foto: Ivan Pinheiro Machado

Hoje, Frankfurt é uma cidade totalmente diferente, com enormes arranha-céus. Tem muito pouco daquela cidade pós-guerra, sequelada pelos bombardeios aliados. Nestes tempos modernos, a balada pós-feira é no lobby do luxuoso hotel Frankfurter Hoff, onde transitam os agentes, editores, candidatos a autores e autores consagrados. É comum, entre uma taça de champanhe Veuve Clicquot  e outra – à bagatela de 20 euros cada taça – , tropeçarmos em algum prêmio Nobel, como a romeno-alemã Herta Muller, Nobel do ano passado que circulava alegremente em todos os lugares de Frankfurt. Depois do advento da internet, a Frankfurter Buchmesse perdeu sua potência, mas não perdeu seu charme e importância. Com a velocidade estonteante das comunicações, os negócios, quando chegamos à Frankfurt, no início do outono europeu, já estão andando ou realizados. Com sorte, descobrimos alguma novidade entre os milhares de livros expostos. Mas é inegável que o contato pessoal ainda é o que nos faz atravessar o oceano e enfrentar os aeroportos insuportáveis. Trocamos e-mails furiosamente durante o ano inteiro com centenas de agentes, editores internacionais e autores. É muito eficiente, mas tudo é muito impessoal. No fundo, nós ainda vamos a Frankfurt para olhar no olho dos agentes e abraçar os velhos amigos, o que (ainda) é impossível fazer pelo Skype…Para ler o próximo post da série “Era uma vez uma editora…” clique aqui.

 

Esporte & arte, cada um no seu lugar

David Coimbra – que honra esta casa como autor – fez uma brilhante reflexão sobre esporte & arte. A chamada “mídia ligeira” às vezes confunde  um e outro. David coloca as coisas nos seus devidos lugares. Veja abaixo sua coluna de hoje no Jornal Zero Hora de Porto Alegre, que tem o título de “Como seria bom ser americano”:

A verdade é que todos queríamos ser americanos. Calças jeans, tênis, camiseta, chicletes, rock and roll, cachorro-quente, carros velozes, shoppings centers, consumo, consumo, todos gostaríamos de ter nascido no Grande Irmão do Norte. Mesmo você, que jura abominar os ianques, você gosta de jazz, você vai a Nova York, mas apregoa que Nova York não são os Estados Unidos. Ao contrário, beibe: Nova York é o resumo dos Estados Unidos. Os americanos se tornaram a Nova Roma, sim, mas não pela força dos seus mariners ou do poder verdejante do seu dólar. Os americanos conquistaram a alma do mundo com o cinema. Jamais uma forma de arte angariou tamanho poder como o cinema produzido nos Estados Unidos. A literatura, que teve o seu auge no século 19, a literatura mudou o mundo. Mas nunca com a velocidade e a amplidão do cinema. O cinema americano mudou o comportamento até de quem não vai ao cinema. Até do esnobe francófilo ou germanófilo. Até do lúmpen. E agora, pela primeira vez, surge um filme brasileiro que emociona o país, se infiltra no consciente coletivo e provoca uma mudança palpável de comportamento. Tropa de Elite, em suas duas partes, mudou uma parte do Brasil. Antes de Tropa de Elite, a polícia era desprezada pelos brasileiros. Agora, a polícia integra as forças do “bem” que lutam contra o “mal”. A polícia passou a defender o cidadão; antes o amedrontava. Os policiais tornaram-se heróis; antes eram pobres-diabos. Tropa de Elite cumpriu o seu papel como obra de arte: fez com que os homens se emocionassem, com que refletissem e com que, enfim, mudassem. Uma obra de arte, por meios estéticos, é capaz disso. Nenhum esporte é capaz disso. Nenhum jogo é capaz disso, e aí me refiro ao futebol, que não é esporte, é jogo, como o turfe, como o basquete, como a canastra, como o par ou ímpar. Futebol, pois, não é arte: é jogo, quase, quase é esporte. Jogador não é artista: é jogador; às vezes, atleta. Logo, ao jogador não cabem certas prerrogativas de artista. Há um limite para a excentricidade do jogador – o limite do profissionalismo. Alguns jogadores não conhecem essa fronteira. Acham-se artistas. Não são. Nada mais distante da arte do que um relapso jogador de futebol. (David Coimbra)

De David Coimbra, a L&PM publica o recém lançado Jô na estrada e outros livros que você vê aqui.

3. A ditadura que odiava os livros – parte I

Por Ivan Pinheiro Machado*

Foi em setembro de 1978 que a última apreensão de um livro por motivos políticos aconteceu no Brasil. O título da obra em questão: “Memórias: a verdade de um revolucionário”. Seu autor: General Olympio Mourão Filho. Sua editora: a L&PM. Mesmo que estivéssemos no início de uma “abertura” – que mais parecia uma fresta de redemocratização, a censura insistiu em bater novamente à nossa porta. O general Mourão Filho havia sido o chefe das tropas que insurgiram em 31 de março de 1964, derrubando Jango e dando início à ditadura militar. Estabelecido o governo golpista, Mourão acabou sendo preterido na hora da escolha no Presidente da República. Primeiro, em detrimento do General Castelo Branco e, depois, do General Costa e Silva. A partir de então, o General Mourão deixou-se corroer pelo sentimento de injustiça até morrer amargurado em 1972. No leito de morte, legou a um amigo, o historiador Hélio Silva, um pacote com os originais das suas memórias, obtendo de Hélio a promessa de que o livro seria publicado. Louco de curiosidade com o que tinha nas mãos, assim que chegou em seu amplo apartamento na Avenida Atlântica, Hélio abriu o pacote e começou a ler a cópia datilografada em papel de seda, com tipos azulados do carbono. Ao final de algumas horas, ele já havia vencido 300 das 500 páginas do original. Estava pasmo. Tinha consigo uma metralhadora giratória cujos alvos eram os poderosos ex-presidentes Castelo Branco, Costa e Silva e Médici. Engoliu em seco ao lembrar do juramento ao General moribundo. Meses depois da morte de Mourão, Hélio havia mostrado os originais a todos os editores importantes do Rio de Janeiro e, diante das recusas em série, concluiu que só um louco seria capaz de publicar aquilo. Mas não desistiu. Mais do que obstinado, Hélio era um católico convicto e, para ele, juramento era algo divino.

Corria o ano de 1977. Meu pai, Antonio Pinheiro Machado Netto, era dono de um colégio, o Educandário Cecília Meirelles, que inaugurou em Porto Alegre a prática de trazer grandes personagens da cultura brasileira para conferências pagas. Lembro de Décio Pignatari, Barbosa Lima Sobrinho, Antonio Callado, Helio Pelegrino e muitos outros, entre os quais Hélio Silva, considerado na época um dos principais historiadores brasileiros do período republicano. Ele falou, foi brilhante e, no final de sua conferência, foi apresentado a mim e ao Lima pelo meu pai. Ali, ficou sabendo que tínhamos uma editora e interessou-se. Era um dos grandes autores nacionais, editado pela Civilização Brasileira, a mais importante editora do país na época. Seu “Ciclo de Vargas”, em 16 volumes de mais de 500 páginas cada, um é uma referência obrigatória para quem quer conhecer a História recente do Brasil. Pois bem. Hélio olhou para nós e perguntou sem rodeios:

“Vocês teriam coragem de publicar um material altamente explosivo?”

“Como assim?” perguntou o Lima.

“As memórias do homem que iniciou a revolução de 1964”.

Eu ri e disse: “Desculpe professor, mas nós não somos uma editora de direita…”

Foi a vez dele rir: “Vocês nem imaginam o que ele diz dos milicos. Ele brigou com todos os generais. É um livro importantíssimo, pois há informações absolutamente inéditas sobre o golpe de 64”.

Fez uma pausa e acrescentou: “Por uma questão de honestidade, devo dizer a vocês que é um material perigoso, pois vai incomodar muita gente. Ele esculhamba os generais e ridiculariza o golpe.”

Estávamos espantados com a revelação. Éramos muito jovens, iniciantes e querendo nos firmar nacionalmente como editores. Esta poderia ser uma boa chance. Topamos na hora. O acordo foi no jantar, com brinde e tudo. Estávamos muito excitados com a possibilidade de editar o livro. Meses depois, estaríamos quase arrependidos e tecnicamente quebrados… (continua na próxima semana)

Ivan Pinheiro Machado e Paulo Lima com o livro de Hélio Silva nas mãos

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2. O Rango marrom: vanguarda por acaso

Por Ivan Pinheiro Machado*

Convidado por um velho amigo, o professor Wladimir Ungaretti, fui à Faculdade de Comunicação da UFRGS para falar sobre livros & editoras a uma platéia de estudantes do primeiro e segundo ano. Foi muito legal. Eu falava para meninos e meninas de, no máximo, 19 anos, muito interessados nas histórias sobre a ditadura, sobre cultura brasileira, etc. Quando eu falo sobre os tempos da repressão para os jovens, eu me cuido. Lembro do meu pai falando pra mim e pro meu irmão sobre o Estado Novo, sobre o Getúlio. Para nós, aquilo (que havia ocorrido meia dúzia de anos antes de nascermos) parecia que tinha acontecido há milhares de anos, no período paleolítico. Já para meu pai parecia que tinha acontecido ontem, pois ele havia vivido aquilo tudo. Portanto, eu tive o cuidado de falar brevemente sobre os “anos de chumbo” para um plateia até, aparentemente, bem interessada. Foi quando uma estudante fez uma pergunta surpreendente, desviando (sabiamente) o assunto da política: “Nota-se o caráter inovador da L&PM desde o primeiro lançamento” disse ela. “Pois ao contrário de todos os livros do mercado, o Rango 1, primeiro livro da editora, foi impresso em tinta marrom. Fale sobre isso”. Aí eu entendi como se criam muitas lendas que circulam  no nosso imaginário. Se a história real não fosse tão engraçada, eu até manteria esta versão vanguardista… Iniciei minha resposta pedindo desculpas, pois iria desapontá-la. E contei a verdade: quando fizemos a L&PM e, consequentemente o Rango 1, tínhamos muitas ideias e nenhum centavo. Nenhum centavo mes-mo!

Este livro de estreia foi impresso em agosto de 1974, numa pequena gráfica que pertencia ao Alfredo Oliveira, amigo nosso, popularmente conhecido em Porto Alegre como “Carioca”. E, naturalmente, de graça. O Carioca exigiu apenas que pagássemos o papel, o que esperávamos fazer com os lucros do Rango. Combinamos que a impressão se daria fora de expediente, num sábado à tarde. Ele escalou dois funcionários e lá fomos para a gráfica com os fotolitos embaixo do braço. Chegamos lá às duas da tarde e estava tudo preparado. Quando entramos no galpão, o impressor nos disse: “Só tem um probleminha, o “seu” Carioca pediu pra não usar a tinta preta, pois ele só tem duas latas e vai precisar na segunda-feira cedo”. Ficamos nos olhando. Aí o rapaz falou: “o ‘seu’ Carioca sugeriu que se misture os restos de tinta pra ver no que dá”. Havia umas 10 latas que ainda tinham um pouco de tinta. Tudo misturado, daria o suficiente para imprimir os 5 mil exemplares de 80 páginas do Rango. Pegamos uma lata grande e colocamos todos os restos lá dentro. Amarelo, vermelho, azul, um pouquinho de preto que tinha numa lata velha e misturamos bem. O resultado foi… marrom. E assim foi impresso. A famosa teoria circunstancial da história, de que fala Millôr Fernandes. O difícil foi conseguir esta cor quando fizemos a segunda edição depois que o Rango foi o mais vendido na Feira do Livro de Porto Alegre em Outubro de 1974. Não preciso dizer que a rapaziada morreu de rir.

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O fenômeno “As veias abertas da América Latina”

A mais tradicional das feiras de livros no Brasil, a Feira do Livro de Porto Alegre, em sua 56ª edição, aponta entre os cinco livros mais vendidos nada mais nada menos do que “As veias abertas da América Latina” do escritor uruguaio Eduardo Galeano. É um fenômeno, como gostam de dizer os próprios uruguaios. Afinal, trata-se de um livro que foi lançado 40 anos atrás. Em agosto deste ano, a L&PM contratou “As veias abertas…” que era o único livro de Galeano que não estava em nosso catálogo. Fizemos uma versão convencional em 21 x 14 cm e uma versão na coleção L&PM POCKET, com uma nova e festejada tradução do escritor Sergio Faraco. É um livro emblemático, um brado de resistência. Conta a história real do continente, onde gestos heróicos e grandes homens são confrontados sistematicamente com o assédio predatório dos colonizadores. Toda uma política de genocídio que justificava a exploração do ouro, da prata e de tantas riquezas de que nosso continente é pródigo. Ao permanecer como um “best seller sistemático”, “As veias abertas da América Latina” mostra que ainda há uma esperança pelo interesse que ele desperta nos jovens. Apesar de Galeano enfatizar em seu prefácio nesta edição de 2010: “O autor lamenta que este livro não tenha perdido a atualidade…” (IPM)