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Autor de hoje: Rudyard Kipling

Bombaim, Índia, 1865 –Londres, Inglaterra, 1936

Levado pelos pais para a Inglaterra aos seis anos de idade, retornou à Índia ainda jovem, trabalhando como jornalista. Publicou vários livros de poemas e contos baseados na vida da Índia colonial, o que lhe trouxe grande popularidade. Dedicou-se também a escrever histórias de aventuras, com ação centrada em personagens infantis. Uma dos mais populares é O livro da selva. Considerado um dos grandes mestres da contística moderna, suas obras, geralmente ambientadas na Índia, procuram exaltar o valor e a missão educadora dos ingleses no Oriente. A postura ultranacionalista do escritor acabou provocando tamanha rejeição por parte da crítica que nem mesmo o Prêmio Nobel de Literatura, recebido em 1907, conseguiu evitar. Só muito mais tarde, Kipling foi amplamente reconhecido como um verdadeiro mestre da narrativa.

OBRAS PRINCIPAIS: O livro da selva, 1894; O segundo livro da selva, 1895; Kim, 1901

RUDYARD KIPLING por Adriana Dorfman

O livro da selva é composto de sete contos ambientados em florestas, planícies e mares, protagonizados por animais e crianças como Mogli, criado pelos lobos e educado pelos professores da selva. A obra é usualmente classificada como literatura infantil, o que possivelmente se deva à escolha dos protagonistas, mas oferece muito também aos adultos. A temática central dessas histórias é a convivência entre grupos de homens e animais, ora na oposição entre presas e caçadores, ora em situações de cooperação entre os habitantes da selva. Batalhas e diálogos ágeis acrescentam dinamismo às vívidas descrições dos personagens.

Os contos compartilham uma tensão entre as classificações (e outras cristalizações como a tradição, as regras, etc.) e as mudanças possíveis entre as classes: o menino que se torna selvagem ganha em sabedoria e força, mas fica permanentemente sem lugar; a foca branca (atenção à cor) empreende uma busca solitária por um lugar melhor para a colônia e só tem sua contribuição reconhecida depois de vencer, um a um, os membros de seu grupo; o pequeno cuidador de elefantes, por sua coragem, deixa o povo das planícies e é aceito entre os montanheses.

O livro da selva é fruto da experiência de colonização britânica na Índia, que durou até 1947. Tendo sido escrito há mais de um século, ilustra um momento da cultura em que a classificação em tipos nacionais ou raciais organizava o mundo, servindo também para justificar a dominação daquelas terras pelo Homem Branco (a expressão é de Kipling), conforme mostra o diálogo entre um chefe político da Ásia Central e um oficial britânico, diante das evoluções executadas por animais em uma parada militar:

– Como é que conseguiram fazer aquela maravilhosa manobra? (…)
– Eles obedecem, como fazem os homens. A mula, o cavalo, o elefante ou o boi obedecem a seu condutor e o condutor a seu sargento e o sargento a seu tenente, e o tenente ao capitão, e o capitão ao major e o major ao coronel, e o coronel ao seu brigadeiro, que comanda três regimentos, e o brigadeiro ao seu general, que obedece ao vice-rei, que é servo da Imperatriz. É assim que as coisas são feitas.
– Quem dera as coisas fossem assim no Afeganistão – disse o chefe –, pois lá obedecemos somente às nossas vontades.
– É por essa razão – disse o oficial, enrolando o bigode – que o seu emir, a quem vocês não obedecem, tem que vir aqui receber ordens do nosso vice-rei.

Vale notar que tais classificações estanques são produzidas por um escritor entre dois mundos, o que hoje é considerado suficiente para inspirar hibridismos. Os conflitos latentes entre as ordens estabelecidas – seja pelo domínio colonial, pelas castas indianas ou pelas leis da selva – vivem entre as páginas de Kipling, o que testemunha sua força criativa.

* Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. Todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Pra melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores. Veja os outros autores já publicados neste blog.

Autor de hoje: Leon Nikoláievitch Tolstói

Iásnaia Poliana, Rússia, 1828 – † Astápovo, Rússia, 1910

Filho de latifundiários da alta aristocracia russa, Tolstoi estudou Direito e Línguas Orientais na Universidade de Kazan. Mais tarde, entrou para o exército e tomou parte na Guerra da Crimeia. Sua obra literária inclui livros de memórias e romances. A experiência nas guerras resultou-lhe no conhecimento das aldeias cossacas, das expedições contra as tribos montanhesas e dos costumes do interior da Rússia. Após a guerra, viajou à Suíça, à França e à Alemanha e, ao retornar, fundou uma escola-modelo para camponeses. Considerado um dos romances mais importantes da história da literatura universal, Guerra e paz constitui um painel épico da sociedade russa entre 1805 e 1815. Dele emana uma visão de mundo otimista, que atravessa os horrores da guerra e os erros da humanidade. A obra de Tolstói também registra crises de consciência e a denúncia da mentira social e da ilusão do amor.

OBRAS PRINCIPAIS: Políkushka, 1863; Guerra e paz, 1863-1869; Anna Kariênina, 1877; Padre Sérgio, 1884; A morte de Ivan Ilitch, 1886; Sonata a Kreutzer, 1889; Ressurreição, 1899

LEON NIKOLÁIEVITCH TOLSTÓI por João Armando Nicotti

O nome Leon Tolstói sugere considerações importantes em relação a outros nomes da literatura russa: sua obra surgiu,nas palavras de um crítico, a partir das denominadas escolas puchikiniana e gogoliana. Foi contemporâneo de Turguêniev, Dostoiévski, Gonchárov e Saltikóv-Schedrín; apreciou O herói de nosso tempo, de Liérmontov; ao reler A filha do capitão, de Púchkin, enfatizou que a psicologia dos personagens ficara em segundo plano e, mais tarde, estabeleceu estreitas relações com Korolénko, Tchekhov e Górki, a geração posterior. Suas primeiras obras (1852-1857) abrangem as épocas de sua vida: Infância, Adolescência e Juventude. Em seguida, sua participação em guerras (Cáucaso e Criméia) fica registrada também, na literatura. A partir de então, Tolstói, longe da carreira militar e tendo como preceptor Iván Turguêniev, investe na literatura, na educação, e concentra-se, também, nos problemas existenciais, sociais e filosófico-religiosos do homem russo. Idealiza uma sociedade russa (similar à apresentada em Os cossacos, 1864) em que todos desfrutem do mesmo plano de igualdade; constrói um vasto painel da vida russa a partir da invasão napoleônica em Guerra e paz (1863-1869) e discute a infidelidade conjugal num mundo hipócrita da alta sociedade russa e a morte em Anna Kariênina (1877), tema este reincidente e específico em títulos como A morte de Ivan Ilitch e Sonata a Kreutzer. O leitor de Tolstói, em especial o de Guerra e paz  e Anna Kariênina, é absorvido pela complexa rede de interesses e jogos psicológicos que confirmarão o destino de cada protagonista. O liame entre autor e leitor se fecha na tentativa deste de se compreender um pouco mais no cenário da existência humana. Tolstói foi um pensador da sociedade russa: escreveu sobre a repressão czarista (Não posso calar!, 1908), discutiu os ditames da Igreja (A confissão, 1882, e Padre Sérgio, 1911), sugeriu um modelo pedagógico novo para a educação (Abecedário, 1872) e buscou critérios para uma definição de arte (O que é a arte?, 1898). Expulso da Igreja Ortodoxa russa, em 1901, Tolstói pregava um cristianismo novo, desligado do dogmatismo eclesiástico a partir da transformação interior do indivíduo. Em Ressurreição, a espiritualização renovada em seus protagonistas deveria ser, segundo o desejo do autor, extensiva a todo o povo da Rússia. Com a chegada do século XX, Tolstói almejava uma nova vida para os injustiçados sociais, na perspectiva de reconciliação do bem, da moral reavaliada e da bondade acima de tudo. Sua obra como um todo enfatizou a vida e suas diferentes formas de amor, assim como apresentou, na essência de personagens como Anna Kariênina, Vronski, Liêvin, Ivan Ilitch, Guerássim, Políkushka, André Bolkonski, Natacha Rostov e Evgueni Irténiev, as manifestações problematizadas frente à vida e à morte, eternizando esse dualismo que compõe o grande mistério da condição humana.

* Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. A partir de hoje, todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Pra melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.

Autor de hoje: Bram Stoker

Dublin, Irlanda, 1847 – † Londres, Inglaterra, 1912

De família modesta, Stoker frequentou o Trinity College em sua cidade natal. Embora atraído pelo jornalismo e pela poesia, especialmente a de Walt Whitman, com quem chegou a manter correspondência, estudou ciências exatas. Funcionário e crítico teatral, esteve na Irlanda em 1876 como secretário e representante do ator inglês Sir Henry Irving, com quem dirigiu o Lyceum Theatre de Londres. Juntamente com outros literatos da época, como Stevenson, Yeats, Conan Doyle, Rider Haggard e Arthur Machen, participou de uma sociedade esotérica e ocultista, cuja temática está presente em sua obra. Sua fama internacional deve-se, sobretudo, ao romance Drácula, que narra a história do conde Drácula, da Transilvânia, um vampiro obcecado pelo amor de sua esposa, morta e reencarnada. Esse enredo tem servido, ao longo do tempo, como inspiração para filmes e romances.

OBRA PRINCIPAL: Drácula, 1897

BRAM STOKER por Rafael Bán Jacobsen

Bram Stoker é um desses autores que garantiu sua imortalidade no panorama da literatura ocidental com apenas uma obra. Apesar de ter escrito e publicado vários romances, contos e até mesmo uma coletânea de histórias de fadas para crianças, seu nome é hoje conhecido como o autor de Drácula. Indagar a respeito da importância de Stoker para as letras é buscar compreender as razões do fascínio exercido por Drácula no imaginário coletivo. Graças, fundamentalmente, às muitas adaptações cinematográficas, todos conhecem bem a história de Jonathan e Mina Harker, Van Helsing e demais membros do grupo que enfrenta e derrota o velho vampiro transilvano obcecado pela busca da reencarnação de sua amada; porém, até mesmo pelo desgaste desse tão repetido enredo, torna-se pouco aparente a riqueza subjacente a ele.

Chama a atenção a grande originalidade da obra, obtida a partir de elementos já conhecidos, a começar pelo seu mote principal, o vampirismo, que, tendo origem na mitologia da Suméria e da Mesopotâmia, já há muito fazia parte do folclore europeu, personificado mesmo em figuras históricas como a condessa Erzsébet Báthory, que, conta-se, banhavase em sangue de mulheres jovens para conservar sua beleza, e o príncipe romeno Vlad Tepes, conhecido pela crueldade de seus atos. Além disso, a decisão de contar a história por meio do testemunho de múltiplos registros – diários, cartas, notas, recortes de jornais, gravações – partiu, provavelmente, da leitura dos livros de Wilkie Collins (The Moonstone, The Woman in White). Essa estrutura narrativa, essa alternância de pontos de vista das diferentes personagens têm a propriedade de conservar intacto o mistério de Drácula, dado que este é sempre aproximado do leitor de forma indireta.

Negando-se uma voz narrativa ao conde, é reforçado textualmente seu papel como o outro, o estrangeiro, a criatura das trevas. Mesmo o estilo do romance, apelando para o sombrio, o sobrenatural e o etéreo, está vinculado à chamada literatura gótica, vertente bastante comum na Inglaterra do século XIX, da qual também fazem parte livros como Frankenstein, de Mary Shelley, e os trabalhos de Edgar Allan Poe. A própria figura de Drácula é construída sobre os dois alicerces básicos de toda literatura: eros e tânatos (amor/sexo e morte em grego). Esses elementos são fundamentais para o entendimento de nossa civilização, e a figura do vampiro surge como a síntese deles, permitindo o pleno desfrute do binômio sangue-sexo e respondendo, ainda, ao anseio da imortalidade. Sombra especular de nossos egos, com todos os seus medos e desejos, a figura do vampiro propicia a conjunção das múltiplas facetas de uma personalidade pluripotente em um ser uno e eterno, não mais dividido e fragmentado, não mais perecível ao tempo. Por trabalhar diretamente com pulsões tão básicas e universais, a saga vitoriana de Bram Stoker, narrada com fluidez e suspense constantes, além de agradabilíssima leitura, torna-se uma obra atemporal e de inegável importância.

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Autor de hoje: Robert Louis Stevenson

Edimburgo, Escócia, 1850 – † Vailima, Samoa, 1894

Filho de um engenheiro civil, estudou Direito, abandonando o curso para dedicar-se à literatura. Residiu na França e, depois, na Escócia. Em 1883, publicou o romance A ilha do tesouro, obtendo prestígio imediato junto ao público. Em suas obras de ficção, Stevenson manteve o gosto pela aventura e pelo fantástico, com notável capacidade de análise psicológica das personagens. O livro que lhe deu maior popularidade, no gênero de romance de aventuras, foi O médico e o monstro, no qual aborda as duas naturezas antagônicas da alma humana. Seus últimos romances reproduzem a frustração do homem diante do contraste entre o desejo e a realidade. Ensaísta, autor de livros infantis, somente depois de sua morte passou a ser considerado um autor vigoroso e original.

OBRAS PRINCIPAIS: A ilha do tesouro, 1883; O médico e o monstro, 1886; A flecha negra, 1888; O senhor de Ballantrae, 1889; As aventuras de David Balfour, 1893; Nos Mares do Sul, 1893

ROBERT LOUIS STEVENSON por Jaime Cimenti

Por que ler os clássicos? Ítalo Calvino já nos disse por que na sua famosa obra, e vale a pena conferir. Mas por que ler Robert Louis Stevenson, um clássico contador de histórias, falecido em 1894? Está certo, em vida sua reputação literária flutuou. Uns o chamavam de ensaísta afetado, sem originalidade, outros diziam que era apenas autor de narrativas para crianças (como se isso fosse pouco). Passados cinqüenta anos de sua morte, os julgamentos do tempo e do público (os que mais importam) lhe fizeram justiça, assim como a avaliação da crítica mais desapaixonada, feita com a ajuda do tempo e do distanciamento necessário.

A ilha do tesouro e O médico e o monstro, clássicos, entre outros trabalhos, colocaram o contista, poeta, ensaísta, romancista e escritor de obras infanto-juvenis, para sempre, no restrito rol dos melhores autores de literatura do mundo. Homem de saúde frágil, depois de muito andar pelo mundo obrigou-se a viver numa das ilhas Samoa até morrer, prematuramente, aos 44 anos. Os nativos o adoravam e o chamavam de Tusitala, contador de histórias. Autor também de A flecha negra, Tales and novels, New Arabian Nights, dois volumes, Nos Mares do Sul e do maravilhoso livro de poemas para crianças A Child’s Garden of Verses (1885), além de muitos outros trabalhos ensaísticos e de ficção, Stevenson, na vida, tinha dois grandes interesses: escrever e se divertir.

Mas o certo é que seu gosto por viagens, aventuras, divertimento e fantasia produziram uma obra maior. Seus melhores ensaios analisam com percuciência a condição humana. Suas narrativas, além de grandes doses de imaginação, ação e criatividade, trabalham aspectos de topografia, história e vão fundo, muito fundo, na análise psicológica, refletindo sobre aspectos morais relevantes. Especialmente em O médico e o monstro, o escritor escocês aborda com profundidade as divisões e as naturezas antagônicas da alma humana. Seus poemas, embora não demonstrem genialidade extrema, são bem-escritos, originais e, no caso de A Child´s Garden of Verses, reveladores de uma sensibilidade especial. Seus contos trabalham muito bem a ironia, o horror, o suspense e os diagnósticos morais. Enfim, o tempo, os leitores, os nativos de Samoa e os críticos estão certos: Stevenson é um excelente contador de histórias, um imortal narrador. Sabia como contar e tinha muito a dizer. Essa combinação sempre funcionou. Para alegria dos leitores que gostam de leitura com prazer.

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Autor de hoje: Fiódor Dostoiévski

Moscou, Rússia, 1821 – † São Petersburgo, Rússia, 1881

Engenheiro e militar, dedicou-se à literatura, levando uma vida boêmia e desregrada. Ainda em vida, foi considerado um os escritores mais populares da Rússia. Simpático às idéias democráticas, combateu o regime autoritário do tsar, ligando-se a grupos anarquistas. Acusado de subversão, preso e condenado à morte, sua pena foi comutada pela de exílio na Sibéria. Em 1859, fixou residência em São Petersburgo, transformando suas duras experiências nos romances Humilhados e ofendidos (1861) e Memórias da casa dos mortos. Trabalhou como jornalista e teve uma vida tumultuada, fugindo para a França ao ser pressionado por credores de dívidas de jogo. Retornou à Rússia, onde escreveu seus melhores romances, dentre os quais Crime e castigo, O idiota e Os irmãos Karamazóv. Antecipando-se à moderna psicologia, explorou em sua obra os motivos ocultos e chegou a compreender, de modo intuitivo, o funcionamento do inconsciente, o sofrimento psíquico, os sonhos e as perturbações causados pelo desequilíbrio mental.

OBRAS PRINCIPAIS: Memórias da casa dos mortos, 1861-1862; Notas do subsolo, 1864; Crime e castigo, 1866; O jogador, 1867; O idiota, 1868; Os irmãos Karamazóv, 1880

FIÓDOR DOSTOIÉVSKI por Fernando Mantelli

Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski nasceu em 1821 em Moscou. Estreia na literatura em 1846 com Gente pobre, novela narrada através de cartas, em que já aparecem suas personagens correntes, os humilhados e ofendidos. Em O sósia (1846), Dostoievski antecipa questões da psicanálise, trata da duplicação das almas, dos seus temas favoritos. Seguem-se os contos longos “O senhor Prokhartchin” e “A senhorita”, ambos de 1847. Em abril desse ano, sua carreira é interrompida: Dostoiévski é preso por motivos políticos e acaba sendo condenado à morte. Em dezembro de 1849, é levado ao pelotão de fuzilamento: lida a sentença, beijam a cruz, preparam trajes para a morte, prendem três homens aos postes, chamavam de três em três, Dostoievski na segunda fila; então interrompem a execução, anunciando a substituição da pena de morte por quatro anos de trabalhos forçados. Na Sibéria, Dostoiévski tem seu primeiro contato com criminosos, tema que nunca deixou de fasciná-lo. Lá nascem as Memórias da casa dos mortos, o primeiro dos seus chamados grandes romances. Livre, volta a São Petersburgo em 1859, publica O sonho do titio e A aldeia Stiepántchikovo e seus moradores. Em 1861, Humilhados e ofendidos e, em 1862, as Memórias. Em 1864, é a vez de Notas do subsolo, em que suas principais discussões filosóficas aparecem: alguém impôs um limite, cabe ao homem parar diante desse limite e se igualar ao resto ou ultrapassá-lo, ainda que à custa de sacrifícios.

A partir de Crime e castigo, inicia a etapa dos grandes romances: O idiota, Os demônios (1872), O adolescente (1875) e Os irmãos Karamazóv. É nesses cinco livros que o universo dostoiévskiano se revela em toda a sua forma. Sua multiplicidade de personagens, um diferente do outro, cada qual falando com a própria voz, aprofundando a noção do humano. E esta é, quem sabe, a maior qualidade de Dostoiévski: o modo como descreve as emoções humanas. Se em suas páginas abundam diálogos metafísicos e religiosos, conceitos políticos, filosóficos e éticos, tudo, porém, vai ao encontro da psicologia de seus personagens, animando-os. São pessoas que, além de pensar, expressam seus sentimentos. Cada personagem traz, dentro de si, seu oposto e vive a interrogar-se sobre o seu verdadeiro caráter. Tudo nelas é em dobro, unindo-se o bem e o mal, o amor e o ódio. Dostoiévski não se satisfaz em colocar de um lado os bons e do outro os maus.

A obra de Dostoiévski retrata a realidade? Importa que parece real, crível. Ele não recria nossa realidade, cria uma nova, completa, que parece real porque não tem contradições internas. Uma realidade intensa, de emoções intensas. Emoções semelhantes às quais ele próprio enfrentou em vida – no simulacro de execução, nas crises de epilepsia, no vício da roleta, na morte do filho. Dostoiévski não tem medo das emoções.

Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. Todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Para melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.

Autor de hoje: Jane Austen

Steventon, Inglaterra, 1775 – † Winchester, Inglaterra, 1817

Filha de um pastor anglicano, pertencente à aristocracia rural inglesa, encontrou, na experiência de viver em um presbitério, material suficiente para a criação de narrativas. Em sua obra, trata o cotidiano de pessoas comuns, contribuindo para dar ao romance inglês o primeiro impulso para a modernidade. Sua aguda percepção psicológica revela-se na ironia do estilo, dissimulado pela leveza da narrativa. Com temas de aparente trivialidade, criou romances de amor, construindo um mundo denso. Neles a ação, o senso cômico e a técnica do ofício oferecem um quadro de crítica social contrário à falsidade, à vulgaridade e à presunção. Sua obra mais conhecida, Orgulho e preconceito, mostra a superação das barreiras de diferença social, colocando em evidência o escasso poder de decisão concedido à mulher.

OBRAS PRINCIPAIS: Razão e sensibilidade, 1811; Orgulho e preconceito, 1813; Emma, 1816; A abadia de Northanger, 1817; Persuasão, 1818

JANE AUSTEN por Elizamari R. Becker

A permanência de Jane Austen junto ao público leitor pode ser explicada, em primeiro lugar, pela natureza de seu confronto com os romancistas de sua época, mostrando-se ela bastante sensível ao gosto literário em voga ao escrever A abadia de Northanger, no qual satiriza o romance gótico. Em segundo lugar, pelo caráter de modernidade conferido ao conjunto de sua obra, como resultado da escolha de temas que circulam em torno de pequenos núcleos de pessoas aparentemente comuns, em cenários também limitados, e que focalizam pequenos incidentes da vida cotidiana.

De natureza recatada, Jane Austen viveu uma vida pacata e sem grandes acontecimentos, o que lhe rendeu estudos biográficos que a apontam como contemplativa, devido à ambientação quase claustrofóbica de seus romances. Em razão disso, sua arte tem sido designada miniaturista. Suas personagens são provincianas de classe média, cuja maior preocupação parece girar em torno do casamento – casamento por amor, segurança financeira, status social –, tema que ela explora com uma ironia sutil e um humor refinado. Sua apurada visão acerca dos relacionamentos humanos, retratando com vivacidade a vida da classe média britânica do século XVIII, trouxe para sua obra de ficção uma sensível mudança na caracterização das personagens femininas. Suas heroínas são, apesar de sua condição social pouco confortável, fortes a ponto de não se sujeitarem ao que a sociedade delas espera, quando não travam uma luta íntima intensa contra os próprios sentimentos, como as heroínas em Emma e Orgulho e preconceito. Também não são belas, ou pelo menos não possuem a beleza frágil e enternecedora que a maioria das heroínas românticas normalmente exibem. Assim o são Elizabeth Bennet, de Orgulho e preconceito, cuja beleza é descrita como tolerável, e Catherine Morland, de A abadia de Northanger, descrita como “uma magricela de aparência desajeitada, pálida, de cabelos escuros escorridos e feições marcadas”.

Sandra M. Gilbert e Sandra Gubar, em seu The Madwoman in the Attic, logram aproximá-la a outras escritoras de sua época – tais como Charlotte e Emily Brontë, Mary Shelley, Emily Dickinson e outras – no maior desconforto de que compartilham: a angústia da autoria. Toda uma tradição literária que só concebia textos oriundos de uma autoria masculina e patriarcal forçou-a ao anonimato, mas não a impediu de criticar os danos causados às mulheres inseridas em uma cultura criada por homens e para homens. Esse poder econômico, social e político masculino vê-se representado em sua obra nas muitas dramatizações de como importa à sobrevivência da mulher saber angariar a aprovação e a proteção dos homens, bem como buscar aqueles que sejam mais sensíveis, embora permaneçam como representantes de toda a autoridade. Dessa forma, Austen soube representar como nenhuma outra escritora de sua época tanto o papel de subordinação da mulher na sociedade patriarcal, quanto suas restritas – ainda que existentes – ações no sentido de melhorar sua condição no cenário familiar e social.

Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. Todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Para melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.

 

Autor de hoje: Marcel Proust

Paris, França, 1871 – † Paris, França, 1922

Filho de médico, passou sua infância em Paris, em Champs-Elysées, e as férias de verão em Illiers, sob os cuidados da família. Estudou Direito em Paris, onde fundou a revista O Banquete, na qual publicou suas primeiras experiências literárias. Freqüentou os salões da época, inspirando-se na alta burguesia e na aristocracia francesa para compor seus romances. Após a morte dos pais, dedicou-se à redação do romance Em busca do tempo perdido, publicado entre 1913 e 1927, composto de sete partes. Opondo-se à temática realista, a obra de Proust registra a evocação da memória, capaz de reunir presente e passado em uma mesma sensação. Relatada em primeira pessoa, ultrapassa a narrativa tradicional e realista através da introspecção e da observação. Nela o autor procura demonstrar que o tempo da vida, que parece irremediavelmente perdido, se recupera por meio da obra de arte. Sua obra ampliou os rumos da literatura, contrariando o pensamento positivista dominante na passagem do século.

OBRAS PRINCIPAIS: No caminho de Swann, 1913; À sombra das raparigas em flor, 1919; O caminho de Guermantes I, 1914; O caminho de Guermantes II, 1922; Sodoma e Gomorra, 1922; A prisioneira, 1923; A fugitiva, 1925; O tempo redescoberto, 1927

MARCEL PROUST por Tatata Pimentel

Marcel Proust nasceu em 10 de julho de 1871 em Auteuil, arredores de Paris, em família fugida das turbulências revolucionárias do centro da cidade. Filho de mãe judia, milionária e possessiva, Jeanne Weil, e de pai médico, famoso e autoritário, Adrian Proust. Supõe-se que, em função dos traumas sofridos pela mãe durante a gestação e o parto, a criança tenha nascido com uma asma incurável – tanto física quanto psíquica. Essa doença perseguirá Proust até a sua morte, em 18 de novembro de 1922. Portanto, a sua vida coincide com o painel histórico narrado, que tem por título geral Em busca do tempo perdido.

Proust consegue publicar em vida: No caminho de Swann, em 1913; O caminho de Guermantes I, em 1914; À sombra das raparigas em flor, em 1919; O caminho de Guermantes II, Sodoma e Gomorra, ambos em 1922. Neste mesmo, sai Sodoma e Gomorra II. Após a morte de Proust, seu irmão, Robert, tenta organizar seus cadernos de rascunhos e decifrar os bilhetes, colados nas folhas e contendo as idéias de Proust para os volumes seguintes. Com esta tentativa, publicam-se: A prisioneira, em 1923; A fugitiva, em 1925; e, finalmente, em 1927, O tempo redescoberto. O infindável trabalho para se chegar a um texto final de todos os romances que compõem Em busca do tempo perdido só termina com a edição definitiva, na coleção Pléiade, organizada por Jean-Yves Tadié, em quatro volumes, em 1987 – desautorizando todas as versões anteriores da obra máxima de Proust. Obra esta interminada e interminável. Quando Proust coloca a palavra fim, o faz durante a escritura do romance, e não ao finalizá-lo. Essa narrativa é um imenso painel da sociedade francesa que coincide com a vida do autor. Guerras, revoluções, manifestações artísticas e, principalmente, o fim de uma aristocracia, paralelo ao surgimento de uma burguesia ostensiva. Emergidas exclusivamente através da memória involuntária do autor, com um gole de chá de tília e uma madeleine prensada contra o palato.

Essas memórias saem, grosso modo, de três grupos sociais: o círculo Guermantes, dos aristocratas, a ascensão da burguesa madame Verdurin e as recordações da infância em Combray. Com a famosa frase: “Durante muito tempo, deitava- me cedo”, o autor deslancha a recuperação do passado, das fobias da solidão e da expectativa do beijo da mãe antes do adormecer – na casa de sua tia-avó em Combray. A justificativa de um caminho que leva à casa de Swann e outro que leva ao castelo dos Guermantes deve-se ao fato de que, saindo pela porta de frente da casa da tia, ia-se para a casa de Swann; saindo-se pelo portão dos fundos, ia-se em direção aos Guermantes. Essa oposição geográfica se realizará na obra de Proust quando a burguesia casa-se com a aristocracia. Os primeiros volumes de Em busca do tempo perdido são os mais lidos; há muito leitor derrotado pelas imensas descrições de sensações do narrador, ao fio de todo o romance. Mas o princípio é extremamente fácil, saboroso e divertido. Em busca é o maior desafio para leitor de todas as épocas, que só se interessa por conhecer “a historinha do livro” – hábito que se formou contemporaneamente com a vitória do best-seller, cuja preocupação única é o mito da narrativa e o final da trama. Em busca do tempo perdido é um romance de sensações. O gosto da madeleine no palato com chá de tília e as receitas fabulosas da velha empregada Françoise. O sentimento de ser ou não traído por Albertine, a frase musical que consagra o amor de Albertine e do narrador e a sexualidade dos amigos íntimos. Nada é confirmado nos romances, e sim deixado na dúvida, pois toda a obra é escrita em primeira pessoa. O que o narrador sabe, ele viu ou lhe foi relatado. Ele não é onipresente nem onisciente, como no romance tradicional.

Os grandes painéis da obra: a reunião da família durante as férias do narrador em Combray, com a imortal figura de Françoise; a carência do amor da mãe e a doença de tia Léonie; a beleza de À sombra das raparigas em flor, que se passa na praia atlântica de Cabourg, no litoral francês, e os lazeres da burguesia e da aristocracia; o Caso Dreyfus, discutido nos salões da sociedade parisiense; o anti-semitismo posto em questão; a pintura infernal da Primeira Guerra em Paris; a descoberta da homossexualidade dos vários amigos do narrador; a descrição de uma descida ao inferno dantesco, num bordel masculino parisiense, durante o bombardeio da cidade. E, por fim, a chave de ouro da obra, com a festa na casa dos Guermantes, onde finalmente o narrador constata a decadência física, moral e intelectual dos milhares de personagens que habitam as páginas de Em busca do tempo perdido. O tempo passou para aquela fatia da sociedade parisiense do fim de século. Alguns, criação literária. Outros, personagens reais da época, como a atriz Sarah Bernhardt.

Ler essa obra é tão difícil quanto ler qualquer obra-prima da humanidade, pela sua extensão, pela quantidade de personagens e por sua mobilidade social: uma madame que vira duquesa e tem outro nome; uma prostituta que vira princesa e também muda de nome. É impossível estabelecer uma geografia na obra e uma genealogia. São essas mutações da sociedade e suas ideologias que a tornam o maior painel literário da passagem do século. Exclusivamente pela sensibilidade do narrador: as pesquisas do autor com as minúcias de moda, penteado e chapéu. Enfim, a transmutação de uma sociedade arcaica francesa rumo à França contemporânea.

Para quem pretende enfrentar Proust no original: Bibliothèque de La Pléiade, quatro volumes, Paris, 1987. Para quem deseja ler em português: tradução de Fernando Py, publicada pela Ediouro, e tradução de Mario Quintana, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira e Lucia Miguel Pereira, publicada pela Globo. Os estudos sobre a obra de Proust pululam, desde Deleuze até Julia Kristeva.

Biografia: A Monumental e Definitiva, de Painter. Mas nada subsiste sem a leitura da obra. Difícil e monumental. Longa e eterna, como qualquer obra de arte.

Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. Todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Para melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.

Marcel Proust é o autor escolhido deste Domingo porque hoje, 10 de julho, é seu aniversário!

Autor de hoje: Eça de Queiroz

Póvoa do Varzim, Portugal, 1845 – † Paris, França, 1900

Viveu sua infância no interior de Portugal, na casa dos avós maternos. Estudou Direito em Coimbra, onde   escreveu e publicou folhetins literários de tendências realistas. Bacharel, mudou-se para Lisboa, onde abriu um escritório de advocacia, exercendo também o jornalismo. Depois de morar em Évora, retorna para a capital, integrando-se ao grupo literário Cenáculo. Em Lisboa, participa das Conferências do Cassino Lisbonense, freqüentando o meio literário no qual pontificavam Antero de Quental e Ramalho Ortigão. Com esse, publicou a novela O mistério da estrada de Sintra (1870), além dos artigos intitulados As farpas (1871), sátira aos costumes burgueses. Participou intensamente da vida literária de seu tempo, contribuindo para a introdução do Realismo em Portugal. Foi diplomata em Havana, na Inglaterra e em Paris, onde terminou seus dias como cônsul. É considerado o principal romancista português.

OBRAS PRINCIPAIS: O crime do Padre Amaro, 1876; O primo Basílio, 1878; Os Maias, 1880; A relíquia, 1887; A ilustre casa de Ramires, 1900; A cidade e as serras, 1901

EÇA DE QUEIROZ
por Luiz Antonio de Assis Brasil

Falar em Eça de Queiroz é dizer Portugal, especialmente aquele Portugal oitocentista, pequeno-burguês, constitucional e conservador. Muito se tem falado na importância da literatura como a melhor forma de conhecimento de determinado universo histórico-cultural. Assim o é; no caso de Eça, porém, não conhecemos apenas aquele Portugal, mas também uma projeção do que deveria ser Portugal. Com ironias de vitríolo, o grande autor nos dá a conhecer um catálogo de imperfeições lusas, consubstanciadas em personagens que, não sendo meros tipos literários, são exemplos de personagens magníficas: a timidez sonhadora e inútil (e transgressora) de Luísa, que trai o marido com o primo Basílio; a circunspecção tola e vazia de um Conselheiro Acácio, do mesmo romance, um homem capaz de discorrer pomposamente sobre as maiores banalidades; a perversão de um Padre Amaro e de um Cônego Dias, clérigos vencidos pela cupidez, homens sem ideal, aproveitadores da situação de desvantagem das paroquianas; a  impossibilidade de nobreza pessoal e familiar nos dias cínicos da contemporaneidade, como se vê em A ilustre casa de Ramires; o brutal retrato da sociedade lisboeta, eivada de vícios, tal como representada em Os Maias; o retrato psicológico mais feliz em toda a literatura portuguesa, aparente na personagem Artur Corvelo, de A capital, um homem que não sabe o que fazer com um talento duvidoso e que acaba na mesma miséria de quando estava em Oliveira de Azeméis, antes de tentar a vida em Lisboa; o pândego e bajulador Raposão, nessa obra sempre citada e sempre lida com o maior gosto, por sua atualidade, A relíquia.

Se Eça de Queiroz tivesse escrito apenas esses livros, já teria seu nome consagrado, mas sua atuação literária foi muito além, exercendo, com igual competência, o jornalismo, a crítica de literatura, o conto e a pequena novela. Em seu tempo, Eça de Queiroz significou a virada que veio inserir seu país na modernidade que, no caso, significava o Realismo. Foi Eça – na companhia de alguns colegas fiéis de Coimbra – que veio materializar esse movimento transformador. O Realismo de Eça foi importante não apenas no plano das inquietações estéticas. Isso seria diminuí-lo. O Realismo de Eça simbolizou a abertura de novos tempos, alterando a sociedade, reavaliando-a e estabelecendo novos parâmetros de entendimento do próprio conceito de cultura em ação. A imagem que temos de Portugal seria radicalmente diversa, não fosse a obra de Eça de Queiroz. Não é exagero consagrá-lo, portanto, como um dos fundadores de sua pátria.

Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. Todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Para melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.

Autor de hoje: Mark Twain

Flórida, EUA, 1835 – † Redding, EUA, 1910

Mark Twain, pseudônimo de Samuel Langhorne Clemens, passou a infância às margens do Mississipi, entre barqueiros, missionários, aventureiros e artistas ambulantes. Subindo e descendo o rio, ouviu lendas e histórias, assim como conheceu diferentes tipos humanos e costumes da região. Com a morte do pai, em 1847, abandonou os estudos e empregou-se como aprendiz de tipógrafo. Após a Guerra Civil de 1861, atraído pela corrida do ouro, foi para a Califórnia, atuando como jornalista e escritor. Destacam-se entre seus livros As aventuras de Tom Sawyer, reconstituição da infância do autor e resposta aos livros moralistas da época, Vida no Mississipi e As aventuras de Huckleberry Finn, sua obra mais conhecida. Considerado precursor da literatura autenticamente americana, Mark Twain não se deixou influenciar pela entonação européia e escreveu no linguajar e na gíria de seu país.

Obras principais: As aventuras de Tom Sawyer, 1876; O príncipe e o mendigo, 1882; Vida no Mississipi, 1883; As aventuras de Huckleberry Finn, 1884

MARK TWAIN por Fernando Neubarth

Há uma história por trás do pseudônimo usado por Samuel Langhorne Clemens. Mark Twain é uma expressão que aprendera a usar nas suas viagens fluviais pelo Mississipi, uma medida de profundidade do rio. Para nós, interessaria medir essa profundidade? Importa é que designa o marco exato de uma linha. Do cotidiano de personagens como Tom Sawyer e Huckleberry Finn, soube mostrar o interior de um país que é também o interior de cada um. Em um relato aparentemente singelo, subjacente a aventuras infanto-juvenis, guarda mostras da hipocrisia que veste a sociedade e críticas à igreja e aos políticos. Suas histórias, a partir do sucesso do conto “A célebre rã saltadora do Condado de Calaveras”, transformaram a literatura americana, tornando-o um clássico universal.

 Ao destacar os valores humanos mais importantes, aqueles que se moldam na infância, Mark Twain deu voz ao que a América tem de melhor. Não a América imperialista, expansionista, mas uma nação que valoriza pequenas grandes histórias, lembranças da gente interiorana, dos bairros, dos subúrbios; sagas de sofrimento e superação, de diferenças étnicas, sociais e econômicas, a base do american way of life e de sua inegável, embora nem sempre verdadeira e concreta, obsessão por justiça. Assim, os relatos de Twain podem ser considerados o início de uma cultura que se difundiu nas letras e talvez ainda mais no cinema. E isso também se deve ao seu humor, muitas vezes incisivo, que provoca ainda hoje discordâncias entre os críticos. Quanto ao seu papel na literatura, Twain dizia que os grandes livros são como o vinho; os dele, como água: as pessoas tomam quando estão realmente com sede.

Voltando ao início, em tudo parece preciso, desde a escolha do pseudônimo. A marca certa, nem maior nem menor em sua profundidade. Um termo que designava duas ondas, duas medidas abaixo da superfície. Uma marca n’água. Na água de um rio que é símbolo, artéria vital de um país que influencia há muito a história do mundo. Sua vida foi trajetória de uma estrela, o espaço entre dois momentos, à semelhança de todas as nossas vidas, início e fim. No caso de Twain, o ciclo de um cometa. Ele escreveu em 1909, um tanto desesperançado, após a perda da esposa e de três dos quatro filhos: “Eu cheguei com o cometa Halley em 1835. Ele vai voltar ano que vem, e eu espero que me leve junto”. O Halley estava visível em 30 de novembro de 1835 quando Twain nasceu e também em 21 de abril de 1910 quando ele morreu. A literatura e o mundo não foram mais os mesmos depois dessa passagem.

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Autor de hoje: Emily Brontë

Thornton, Inglaterra, 1818 – † Haworth, Inglaterra, 1848

Filha do reverendo de Haworth, em uma pequena e isolada vila de Yorkshire, cedo se tornou órfã de mãe, vivendo sob os cuidados de uma tia materna. O isolamento da província agreste de Yorkhire e a severidade paterna marcaram sua infância e adolescência. Desde cedo, com suas irmãs, Charlotte e Anne, exercitou a vocação literária, modo de fugir à atmosfera opressiva da casa paterna. Juntas, escreveram histórias sobre o reino imaginário de Gondal e Angria e também publicaram um livro de poemas. O morro dos ventos uivantes, que Emily publicou em 1847 sob o pseudônimo de Ellis Bell, é seu único romance. Sob aparente reconstrução da realidade, sobrepõem-se na obra visões fantasmagóricas e imaginadas. Mesmo sem obter o sucesso imediato que tivera sua irmã Charlotte, autora de Jane Eyre (1847), O morro dos ventos uivantes fez com que Emily Brontë fosse reconhecida como uma das principais escritoras da literatura inglesa.

Obra principal: O Morro dos Ventos Uivantes, 1847

EMILY BRONTË por Ricardo A. Barberena

Em sua sublimidade cintilante, Emily Brontë tece um locus historiográfico, marcado por uma veemência poética e imagética que desestabiliza o equilíbrio narrativo de autores como Charles Dickens e Jane Austen. A pujante evocação sombria na sua obra máxima O morro dos ventos uivantes certamente torna-se um clássico da literatura inglesa devido a sua estrutura de enredo que intercambia insinuações sobrenaturais, arquétipos trágicos, paisagens psicológicas, intensidades de paixão/fúria. Ao apontar para a inconstância no arcabouço das máscaras sociais, o romance de Brontë instaura a representação de personagens perdidas num indomável vácuo da fantasia e da subjetivação niilista, emoldurando-se uma relação amorosa que remete à completa destruição num byronismo demoníaco: Catherine e Heathcliff deflagram a primeira pulsão vida-morte.

Numa terrível e endemoniada sucessão de casamentos e mortes precoces, O morro dos ventos uivantes desvela as tensões sociais que impedem a tradicional união romanesca, alijada dos fortes sopros dos ventos da anima e da sombra junguiana. A história é narrada por um personagem nomeado Lockwood, que está alugando uma casa de Heathcliff. Cabe lembrar que a casa, Thrushcross Grange, situa-se muito próxima da Wuthering Heights [casa que dá título ao livro]. Quanto à sua força literária, Brontë diferencia-se dos demais escritores do século XIX devido a uma impactante qualidade imaginativa traduzida em uma poética mediatizada por uma ferocidade mórbida (própria do relato policial) e uma pureza essencial (passível da magnitude dos acordes de Tristão e Isolda, de Richard Wagner, na belíssima adaptação de O morro dos ventos uivantes para o Cinema [1939]).

Em termos resumidos, diríamos inequivocadamente que O morro dos ventos uivantes integra um seletíssimo grupo de obras na literatura inglesa, tratando-se de uma paisagem narrativa sinistra e singular que aponta para uma condição de amar que mutila a própria vida num dilaceramento da castidade da alteridade. Enquanto transtornada chama de luz e escuridão, a escrita de Brontë descortina uma horripilante e incomensurável identificação feminina alinhada à criatividade anárquica do amor de Catherine por Heathcliff. Esteticamente impactante, Brontë rejeita a tradição do Alto Romantismo através do questionamento da exaltação do desejo masculino como persona lírica monolítica e dominante.

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