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Cortázar inspirou Godard

Júlio Cortázar foi enorme. Tinha cerca de dois metros de altura, mãos gigantescas e um fôlego maiúsculo que o levou a tocar trompete. Nasceu na embaixada da Argentina em Bruxelas e, aos quatro anos, retornou à terra de seus pais, de onde saiu em 1951 para se estabelecer em Paris e nunca mais voltar. Seus contos – muitos deles fantasiosos – seguem sendo adorados por uma legião de leitores.  Suas histórias são multitemáticas, há jazz, gatos, velórios, portas que escondem segredos, tango, jogos, estradas… “A autoestrada do sul”, que é um de seus contos mais famosos, dá nome ao livro que, em poucos dias, chegará à Coleção L&PM Pocket. O livro traz este e mais sete contos selecionados por Sérgio Karam e com nova tradução de Heloisa Jahn. E uma curiosidade: “A autoestrada do sul” inspirou Jean-Luc Godard a criar o filme “Weekend”. Leia abaixo o trecho inicial do conto e depois assista ao trailer do filme de Godard:

No começo a garota do Dauphine insistira em contabilizar o tempo, embora para o engenheiro do Peugeot 404 isso já não fizesse diferença. Qualquer um podia consultar o relógio mas era como se aquele tempo preso ao pulso direito ou o bip bip do rádio medissem outra coisa, fossem o tempo dos que não fizeram a besteira de querer voltar para Paris pela autoestrada do sul num domingo à tarde e, logo depois de sair de Fontainebleau, foram obrigados a diminuir a velocidade, parar, seis filas de cada lado (é sabido que nos domingos a autoestrada fica inteiramente reservada aos que regressam para a capital), ligar o motor, avançar três metros, parar, conversar com as duas freiras do 2HP da direita, com a garota do Dauphine à esquerda, olhar pelo retrovisor o homem pálido ao volante de um Caravelle, invejar ironicamente a felicidade avícola do casal do Peugeot 203 (atrás do Dauphine da garota), que se distrai com a filhinha e faz brincadeiras e come queijo, ou tolerar de tanto em tanto as manifestações exasperadas dos dois rapazinhos do Simca que precede o Peugeot 404, e mesmo descer do carro no topo da ladeira e explorar sem se afastar muito (porque nunca se sabe em que momento os carros lá da frente recomeçarão a avançar e será preciso correr para que os de trás não disparem a guerra das buzinas e dos insultos), e assim chegar à altura de um Taunus na frente do Dauphine da garota que verifica a hora a todo momento, e trocar algumas frases desalentadas ou espirituosas com os dois homens que viajam com o menino louro cujo maior divertimento nessas precisas circunstâncias consiste em fazer circular livremente seu carrinho de brinquedo sobre os assentos e o rebordo posterior do Taunus, ou ousar avançar mais um pouco, embora não pareça que os carros da frente estejam prestes a retomar a marcha, e contemplar com um pouco de pena o casal de velhos do id Citroën que parece uma gigantesca banheira roxa na qual sobrenadam os dois idosos, ele descansando os antebraços sobre o volante com ar de paciente cansaço, ela mordiscando uma maçã com mais aplicação que vontade.

Contos que estarão no livro A autoestrada do sul e outras histórias: “A casa tomada”, “O perseguidor”, “A porta condenada”, “Comportamento nos velórios”, “A autoestrada do Sul”, “Manuscrito achado num bolso”, “Tango de volta” e “A escola de noite”.

O jazz era uma cas paixões de Cortázar e está presente em muitas de suas histórias

O jazz era uma cas paixões de Cortázar e está presente em muitas de suas histórias

Apontamentos sobre uma semana passada em Buenos Aires #1

Por Caroline Chang*

Na semana passada, participei da VIIIa. Semana TyPA de Editores en Buenos Aires, a convite da Fundación TyPA – uma instituição privada e sem fins lucrativos – e da Embaixada Brasileira na Argentina. A ideia é promover, in situ, a literatura argentina, proporcionando encontros entre os editores estrangeiros participantes e argentinos, também encontros com agentes literários, palestras e outras atividades. Segue abaixo um pouco do que vi, senti e pensei.

– Chegando aqui, descobri que a Fundación TyPA foi fundada em seguida à e em função da crise que castigou a Argentina em 2001. Para combater o cenário de desastre econômico, juntos, agentes de várias áreas da cultura – literatura, patrimônio, cinema e artes plásticas – se juntaram para pensar maneiras de promover os distintos setores culturais e ajudá-los a contornar a crise. Não pude deixar de admirar a iniciativa, tomada em um contexto que faria muitos povos se entregarem à prostração. Também não pude deixar de invejar esse temperamento portenho e de pensar que não por acaso a Argentina conquistou sua Independência à unha, e não no canetaço (aliás, o país se prepara para festejar, em maio próximo, seus 200 anos de independência).

– Impressionante o número, a variedade e a qualidade das editoras pequenas e independentes da Argentina. Fiquei me perguntando se no Brasil não há tantas, proporcionalmente, ou se eu é que não as conheço. A Libre, claro, é referência aqui, e os hermanos admiram a iniciativa brasileira tanto quanto nós as deles. Talvez uma diferença importante esteja no fato de que uma pequena editora argentina, se fizer direitinho o seu trabalho, encontrar seu nicho e perseverar – e se encontrar um bom distribuidor nos outros países de fala hispânica, inclusive na Espanha –, tem mais chances de multiplicar suas vendas. Entendo que para as pequenas editoras brasileiras tal expansão comercial é bem mais difícil, senão impossível (alguém conhece algum editor que venda livros para Moçambique?).

– Apesar da pujança portenha, me parece que os livros brasileiros, de um modo geral, são mais modernos e arrojados, em termos de capa e design, do que as edições que se vê nas livrarias argentinas. Há, é claro, a bela coleção de traduções da Adriana Hidalgo, os bonitos livros da HUM e os lindíssimos livros da pequena Tamarisco – todas editoras independentes –, mas creio que, no geral, as capas de livros brasileiras são mais modernas, quiçá menos figurativas e mais limpas.

– Invejável a quantidade e a qualidade das livrarias de Buenos Aires. Se são em maior número do que todas as livrarias do Brasil, não sei, mas eu bem que não me importaria em morar em uma cidade em que se pode sair de uma festa à meia-noite e meia, voltar a pé para casa pela Corrientes, sem medo de assalto e, de quebra, parar no caminho na Livraria Edipo para comprar um livro, como eu fiz. Destaque para a relativamente nova livraria Eterna Cadencia (www.eternacadencia.com – ver foto), em Palermo, e também para a Libros Del Pasaje (www.librosdelpasaje.com.ar ), também em Palermo.

*Caroline é editora da L&PM
**Nota do editor: amanhã, neste mesmo blog, a continuação dos apontamentos sobre a semana TyPA de Editores em Buenos Aires.