por Jorge Furtado*
Ótima notícia: acaba de ser lançada pela L&PM a nova “Enciclopédia dos quadrinhos”, do Goida e do André Kleinert, muito ampliada e atualizada. São mais de 500 páginas com o que há de melhor na história dos quadrinhos no Brasil e no mundo. O livro tem muitas e boas ilustrações, bibliografia e referências, incluindo sites, e ainda uma pequena história da história em quadrinhos, do Goida. É um daqueles livros fundamentais, que para de pé na estante e ao qual sempre voltamos. Presente de Natal perfeito para pais e filhos espertos.
Os quadrinhos vão muito bem, obrigado. São tantos os bons lançamentos que fica difícil escrever sobre eles, há que se encontrar tempo para lê-los. Enquanto as indústrias da notícia, da música e do audiovisual travam uma luta inglória contra a internet, os livros – especialmente os livros bonitos e com boas ilustrações – aumentam sua vendas: nada como o papel para ler ou apreciar bons desenhos. (…)
Reproduzo aqui parte de um texto que escrevi (no século passado) sobre quadrinhos:
Aviso que não sou nem de longe um conhecedor do assunto. Sei o nome de bem pouca gente e detesto a maioria dos novos gibis que estão nas bancas, quase todos envolvendo heroínas modelo barbie (peitudas de cintura fina) enfiadas em roupas colantes de borracha, saltando de nada para lugar nenhum enquanto disparam armas ridículas e dizem coisas que eu nem cheguei a ler mas aposto que são bobagem. Me interesso pelos quadrinhos pelo mesmo motivo que me interesso por cinema, literatura, artes plásticas ou qualquer forma de expressão dos nossos medos e desejos: o prazer de entrar em contato com o que os seres humanos tem de melhor e me sentir menos estranho numa terra estranha.
Quadrinhos só são tratados como arte de segunda categoria por quem: a) não teve a sorte ou a curiosidade intelectual de conhecê-los; b) ao conhecê-los, não teve a sensibilidade ou paciência para distingui-los; c) é ignorante mesmo. Para quem não gosta e se enquadra nas categorias a ou b, sugiro a leitura de “Desvendando os Quadrinhos“, de Scott McCloud, um estudo ainda mais abrangente que o clássico “Quadrinhos e Arte Sequencial“, do Will Eisner. É um curso completo, melhor que a maioria dos livros sobre cinema que eu conheço. McCloud analisa com perfeição o nascimento simultâneo da representação pictórica e da palavra escrita no teto das cavernas. Imagem e palavra nasceram juntas, representando um homem, um boi ou uma arma de caça. Lentamente o ícone se afasta da imagem que o gerou e o homenzinho vira a letra T ou A, e o boizinho vira Mu e logo ninguém lembra mais porque e surgem as escolas de alfabetização. Pobre do Ivo, vê a uva mas não sabe como se escreve.
Cinema e quadrinhos são formas de expressão muito semelhantes, pelo uso simultâneo de imagens e palavras. (Na manipulação de ritmos e no fazer sentir o passar do tempo, cinema se parece mais com música. E na construção dramática, com o teatro.) Detesto usar a palavra arte, mais gasta que corrimão de asilo, para definir qualquer coisa, mas partindo da definição de Gombrich de que “não há arte, só há artistas”, acho que há cada vez mais arte nos quadrinhos e menos no cinema. O cinema é cada vez mais (sempre foi) uma forma de expressão coletiva. O cinema é cada vez mais (nem sempre foi) um negócio. O artista raramente convive bem com as dezenas de filtros que a indústria coloca entre intenção e gesto. Seria impossível para Robert Crumb sobreviver a uma série de reuniões com agentes, produtores e patrocinadores para fazer seu primeiro filme. Bem mais fácil para ele foi abrir um caderno e riscar com um lápis. Que depois tenha virado capa de disco da Janis Joplin ou frequentasse milhares de pára-lamas dos caminhões americanos foi conseqüência do seu talento, óbvio até para o pior dos fariseus.
Texto integral publicado no “Não” em 12.06.1999:
http://www.nao-til.com.br/nao-63/imagens.htm
*Jorge Furtado é diretor de cinema, roteirista e escritor. Pela L&PM publicou Meu tio matou um cara. O texto acima foi escrito originalmente para o blog da Casa de Cinema de Porto Alegre e postado em 07 de novembro de 2011.