Por Anonymus Gourmet (José Antonio Pinheiro Machado)*
Anonymus Gourmet, que sobreviveu ao regime militar, inclui entre suas vaidades favoritas a tolerância amável ao direito das minorias. Ele sempre esteve do lado mais difícil, orgulha-se Madame Queiroz, testemunha daqueles tempos. Ela gosta de repetir a frase de Borges (ele, sempre ele): A um verdadeiro cavalheiro só podem interessar causas perdidas. Houve um tempo em que os vegetarianos não passavam de uma minoria ridicularizada. Anonymus, então, não hesitou em empunhar alfaces e cenouras como se fossem estandartes que não poderiam ser calados. Hoje, a carne a carne vermelha como dizem aqueles que desejam estigmatizar nossos bifes, diz a solidária Madame Queiroz é o alvo da Inquisição.
– Ainda bem que os Torquemadas ainda não estão incendiando açougues! – constata Anonymus.
Em pleno mês Farroupilha (no início, era a “data”, com o tempo virou “Semana Farroupilha”, agora é o setembro inteiro), Madame Queiroz gosta de lembrar um dos maiores escritores do Rio Grande, o inesquecível Athos Damasceno: “Ao passo que o Norte flutuava numa doce enseada de calda, nós aqui singrávamos num mar vermelho de sangue – sangue de boi, de ovelha e de carneiro. E não raro, até sangue de homem, tanto nos custou, em diferentes épocas, levantar uma barreira de peitos contra a cobiça dos espanhóis e suas pretensões territoriais”.
Tudo isso adverte que o churrasco dominical rio-grandense tem raízes profundas. Anonymus gosta de lembrar que o gado bovino chegou ao Rio Grande do Sul no século 17, mostrando o recorte já amarelado de uma antiga revista Claudia, no texto excelente da querida amiga Adélia Porto. Era o chamado gado xucro ou gado chimarrão, que vivia à solta, sem cerca e sem controle, caçado pelos índios charruas, nativos da região, que se tornaram grandes mestres da arte do churrasco. Adélia conta que a habilidade e o apetite dos índios espantaram o padre Antônio Seppé, que esteve por aqui em 1691. Seppé escreveu um livro, Viagem às Missões Jesuítas e Trabalhos Apostólicos, onde se lê: “Impossível dizer-se com que perícia e rapidez os índios pegam uma rês, derrubam-na, tiram-lhe o couro e esquartejam-na. Mas muito mais rápidos ainda são no comer”. Perplexo, o padre fala de um casal de índios que, sentindo fome, interrompeu a lavração de uma roça e devorou um dos bois de serviço, utilizando o arado, que era de pau, para principiar o fogo – um insólito churrasco de emergência. Depois dos índios, vieram os comerciantes de couros e os tropeiros, que recolhiam gado para São Paulo e Minas Gerais. Eram os primeiros gaúchos, gente rude, sem governo, que “morava na sua camisa, debaixo do chapéu”.
* José Antonio Pinheiro Machado (Anonymus Gourmet) é autor de diversos livros da série Gastronomia L&PM. Este texto foi originalmente publicado na pg. 2 do Caderno Gastronomia de Zero Hora do dia 16 de setembro.