No dia primeiro de outubro, o Correio do Povo completou 120 anos de atividades ininterruptas. Durante 50 anos, ele foi considerado um dos maiores e mais influentes jornais brasileiros, período em que foi dirigido pessoalmente pelo seu dono Breno Alcaraz Caldas, filho do fundador Caldas Jr. Acossado por sérios problemas financeiros, Breno Caldas viu-se obrigado a vender o jornal em meados dos anos 1980. A L&PM publicou, em 1987, um grande depoimento de Breno Caldas dado ao jornalista e escritor José Antonio Pinheiro Machado sobre a história, a glória e a queda do grande jornal. Aqui reproduzimos o texto escrito por José Antônio, publicado na edição eletrônica do Jornal “JÁ” do dia 3 de outubro de 2015. Neste texto o jornalista destaca o fato de que, na edição especial comemorativa aos 120 anos do Correio do Povo, sequer foi mencionado o nome de Breno Caldas.
Nos 120 anos do Correio do Povo,
a segunda morte de Breno CaldasPor José Antonio Pinheiro Machado
Com a mesma discrição que viveu, o jornalista Breno Caldas teve no dia 1º de outubro passado sua segunda morte.
O fato ocorreu nos festejos dos 120 anos do Correio do Povo e na edição comemorativa a essa data notável. Breno Caldas foi o jornalista mais importante da história do Correio do Povo.
Filho do fundador, Caldas Júnior, Breno Caldas comandou o jornal durante 50 anos ― os 50 anos em que o Correio do Povo se tornou um dos jornais mais importantes do País.
Apesar disso, seu nome não mereceu destaque na edição comemorativa do jornal. Na verdade, o Correio do Povo de hoje, que comemora os 120 anos que não viveu, é bem diferente do Correio do Povo que construiu a lenda: o Correio do Povo de Breno Caldas.
A primeira morte do jornalista Breno Caldas, sua morte física, ocorreu em 1989, aos 79 anos, depois de uma agonia quase tão dolorosa quanto a do jornal que dirigiu durante meio século, o Correio do Povo.
Fui seu amigo durante seus últimos anos, quando já estava longe de ser um dos 10 homens mais ricos do Brasil, como foi considerado pela revista Veja nos anos 1970.
Aproximei-me de Breno Caldas movido pela perplexidade que, desde 1984, atingia a maioria dos gaúchos: como e por que o Correio, a publicação mais importante do Rio Grande ― e uma das mais importantes do Brasil ―, quebrou?
Era a história incrível de um jornal que tinha deixado de circular apesar de ter invejável espaço publicitário e 90 mil assinaturas pagas.
Já tinha ouvido as opiniões e análises mais diversas, mas eu queria saber a versão do personagem principal: o que pensava a respeito aquele homem enigmático que tinha sido uma espécie de Vice-Rei do Rio Grande, e que, depois da derrocada, se recolhera a um silêncio impenetrável na sua bela propriedade da Ponta do Arado?
Nossos primeiros contatos foram muito difíceis, pois o “Dr. Breno” não admitia a idéia da publicação de um depoimento seu sobre o fim do Correio do Povo:
“Ninguém está interessado nas desculpas de um falido”, dizia, com sua inesgotável capacidade de rir de si mesmo.
Se não fosse nossa paixão em comum por alguns esplêndidos cavalos, especialmente os egressos dos campos de criação do inesquecível Marcel Boussac, as conversas não teriam ido adiante: talvez tivessem ficado naquele final de uma tarde luminosa de inverno em que tomamos chá inglês Earl Grey com biscoitos caseiros, quando visitei-o pela primeira vez.
Mas, por causa dos cavalos, voltamos a conversar, e o assunto voltou para o jornal. Por fim, o constrangimento do empresário mal sucedido sucumbiu diante da sensibilidade do velho redator-chefe, e Breno Caldas concordou em me conceder um longo depoimento que resultou no livro “Meio Século de Correio do Povo —Glória e Agonia de um Grande Jornal”― o livro mais vendido da Feira do Livro de Porto Alegre de 1987, que obrigou a Editora L&PM a imprimir uma segunda edição durante a Feira.
Como ficou claro no livro, Breno Caldas tinha a dizer, é claro, muito mais do que desculpas sobre a falência; e muito mais gente do que ele imaginava estava interessada na sua versão.
Quase todos perceberam esse lado épico de uma tragédia shakesperiana: ele perdeu sua fortuna tentando salvar sua paixão, o jornal.
O livro não tem o depoimento de um ressentido, mas sim o balanço de alguém que chegou ao fim da vida com seu dever cumprido. Nas saborosas reminiscências de um velho jornalista, Breno Caldas retratou de forma impiedosa, os equívocos – especialmente os dele – que levaram sua empresa a mergulhar em dívidas impagáveis quando decidiu renovar o parque gráfico e implantar uma emissora de TV. Também fez um libelo corajoso com acusações (que não tiveram contestação) a políticos e governantes da época que deram a voz de comando: “Vamos quebrar o Breno!” Atribuía isso a um ajuste de contas de poderosos, descontentes com sua “excessiva independência”.
Era um homem conservador, mas, como lhe confidenciara um general, “não inteiramente confiável”. Sua falência foi um filme repetido nos tempos do “milagre brasileiro” com tantos outros empresários: depois de ter sido induzido a captar financiamentos em dólar através da famigerada “Resolução 63”, Breno Caldas enfrentou duas maxi-desvalorizações da moeda que multiplicaram sua dívida.
Em vez de deixar a pessoa jurídica, isto é, o jornal, afundar, salvando sua fortuna pessoal, resistiu em desespero e consumiu 90% do seu imenso patrimônio particular tentando salvar o Correio do Povo. Por certo que não agiu com a prudência que se quer de um empresário, mas foi um jornalista exemplar: num dos lances finais da agonia do jornal, quando não tinha mais crédito para obter papel, trocou a metade dos 800 hectares que possuía na espetacular Fazenda do Arado, no sul de Porto Alegre, pelas bobinas necessárias para imprimir o Correio mais algumas semanas.
No que restou do Arado, uma belíssima propriedade no extremo sul do município de Porto Alegre, onde o rio Guaíba faz a sua última volta, Bruno Caldas passou os últimos anos sem qualquer arrependimento pelos prejuízos incalculáveis que teve: “Tudo o que eu possuía, veio do Correio; era justo que voltasse para o jornal.”
Durante as gravações do depoimentos que me concedeu sempre se recusou a mencionar as cifras exatas de suas perdas. Mas, depois do livro impresso, num fim de tarde, quando bebíamos Dimple na sacada do seu gabinete, no Arado, diante do pôr-de-sol no Guaíba, confessou:
“Uma vez, naqueles dias, numa única tarde perdi 35 milhões de dólares”.
Mas em seguida mudou de assunto, passando a recordar Estensoro, El Centauro, El Supremo, Estupenda, e outros cavalos magníficos que, nos bons tempos, criou nos campos do Haras do Arado. Também o Haras se foi, na voragem das dívidas.
A todos esses golpes resistiu sem amargura, recolhendo-se às tardes silenciosas de sua bela biblioteca com centenas de volumes encadernados em couro, onde se deliciava lendo Dickens, Proust, Goethe e Chateaubriand ― sempre no original: ele falava, lia e escrevia com fluência em inglês, francês e alemão.
Só não teve forças para enfrentar um último golpe, poucos anos antes de sua própria morte: a morte do filho, Francisco Antônio, de pouco mais de 50 anos, que por mais de três décadas o acompanhou, também trabalhando no Correio, na gerência comercial. A luta silenciosa do filho durante mais de um ano contra o câncer, sem uma queixa sequer, deixou Breno Caldas espantado:
“O meu filho tinha fibras que eu desconhecia”, me disse.
Não se recuperou desse golpe, porém. E poucos meses depois, com problemas renais e respiratórios, mergulhou numa agonia dolorosa e irreversível. Enfrentou-a com a serenidade que suportou o naufrágio do seu jornal, revelando as mesmas fibras insuspeitadas do seu filho diante da morte.