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Passe Livre

Blog da Folha – Por Elekistão (Cassiano Elek Machado) – 14/08/13

Ninguém descreveu melhor um engarrafamento do que Julio Cortázar. No primeiro conto de “Todos los Fuegos el Fuego” (que título, não, senhoras e senhores?), o escritor franco-argentino descreve um congestionamento que dura meses, numa estrada que leva Fontainebleau a Paris. A boa nova é que o mais bonito trânsito da literatura mundial está de volta, em nova edição, a este congestionado país tropical. “A Autoestrada do Sul & Outras Histórias” (org. Sérgio Karam, tradução Heloisa Jahn, 21 tostões) é o nome de uma coletânea de contos que a editora gaúcha L&PM publica estes dias, em formato de bolso — cabe em qualquer porta-luva).

Engarrafamento com 13 mil carros de brinquedo em Madrid

Engarrafamento com 13 mil carros de brinquedo em Madrid

Escrita em 1964, “Autopista del Sur” é uma descrição minuciosa de um gigantesco  nó de carros, enlaçados sob o sol de agosto (e eu cito: “…O sol, que se punha do lado esquerdo da rodovia, derramava sobre cada automóvel uma última avalanche da geleia alaranjada que fazia ferver os metais e ofuscava a vista, sem que jamais uma copa de árvore desaparecesse completamente atrás de nós, sem que a outra sombra entrevista à distância se aproximasse a ponto de mostrar sem a menor dúvida que a massa de automóveis estava se movendo nem que fosse um pouquinho..”).

Os personagens do conto não têm nomes: cada um é tratado de acordo com o carro onde está empacado. Há o engenheiro do Peugeot 404, o homem pálido e solitário do Caravelle, os recém-casados do Volkswagen. Nas primeiras horas, cinco horas, eles avançam uns 50 metros (segundo os cálculos do engenheiro do Peugeot). Mas não muito mais nas horas e dias seguintes. E vem a fome, e a sede, o frio, o sono, as necessidades fisiológicas.

Pouco a pouco, a “sociedade” do engarrafamento vai se organizando. Um consegue água, outro, cobertores, uma das freiras à bordo do 2HP descola um sanduíche de presunto, enquanto o Ford Mercury e o Porsche traficam mantimentos. Motoristas se conhecem, se apaixonam, alguns até morrem.  E eis que, de golpe, do mesmo modo fantástico como havia se formado, a enorme maçaroca de carros começa a se mover.  E então…

“…todos corriam a 80 km/h na direção das luzes que cresciam pouco a pouco, já sem que se soubesse direito para que tanta pressa, para que tanta correria na noite entre carros desconhecidos onde ninguém sabia nada dos outros”

O jovem Cortázar, preparando-se para encarar um engarrafamento

O jovem Cortázar, preparando-se para encarar um engarrafamento

Numa entrevista dada muitos anos depois sobre o conto, Cortázar (1914-1984) contou a origem (e sua leitura crítica) da história.

“Estava na Itália e li um ensaio que afirmava que os trânsitos não tinham nenhuma importância: me pareceu superficial e frívolo dizer isso. Os engarrafamento são um dos signos mais negativos desta triste sociedade em que vivemos, que provam a contradição com a vida humana, a busca pela desgraça, a infelicidade, a exasperação através da grande maravilha tecnológica que é o automóvel. Ele deveria nos dar a liberdade e está nos trazendo as piores consequências. Nunca havia estado num congestionamento quando escrevi o conto. É curioso que alguns meses depois de ter escrito a história passei por isso. Estive durante cinco horas numa estrada de uma província francesa num engarrafamento. Descobri com surpresa e com uma sensação de fatalidade que o começo do conto se repete quando você está num verdadeiro congestionamento. Você desce do carro, pede um cigarro para o motorista ao lado, blasfema contra a prefeitura, os automóveis e tudo o mais. E logo há um momento em que começa muito calor e começam os problemas físicos, e vem uma senhora e pede água, porque uma criança está chorando. Foi uma experiência impressionante me ver dentro de meu próprio conto..” 

Soa bastante familiar, não?

P.s. Em agosto de 2010, o conto de Cortázar se materializou numa estrada chinesa, a via que liga Pequim ao Tibete. Um engarrafamento ao longo de 100 quilômetros da rota demorou 11 dias para ser desbaratado. Leia aqui bom texto do escritor espanhol Vicente Verdú sobre o episódio. 

P.s.2  Além de ter exibido sua destreza no congestionamento, Cortázar teve ótima performance em alta velocidade. Em parceria com Carol Dunlop, com quem era casado, ele escreveu no início dos anos 1980 o maravilhoso “Os Autonautas da Cosmopista”, relatando uma viagem pela estrada, de Paris a Marselha. Está esgotado há um par de décadas no Brasil. 

P.s. 3 O livro “A Autoestrada do Sul & Outras Histórias” inclui, pasmem, outras histórias. Entre elas, está a joia “O Perseguidor”, inspirada no saxofonista Charlie Parker, um dos favoritos de Cortázar, ao som de quem estas anotações foram escritas.

Em entrevista à Folha, Ferlinghetti fala de “Amor nos tempos de fúria”

A capa do Caderno Ilustrada da Folha de S. Paulo de sábado, 17 de novembro, é estampada com uma grande foto de Lawrence Ferlinghetti, escritor que fundou a livraria e editora City Lights de São Francisco (EUA), célebre por lançar os expoentes da geração beat. Em uma bela matéria, o jornalista Cassiano Elek Machado conta porque Ferlinghetti continua sendo, aos 93 anos, um dos grandes nomes da contracultura. Na entrevista exclusiva, Ferlinghetti fala da sua vida e obra, com especial destaque para o livro Amor nos tempos de fúria, romance inédito no Brasil que a L&PM lança em dezembro. 

QUANTO MAIS RADICAL MELHOR

“Precisamos lutar pelo futuro”, diz o poeta da contracultura Lawrence Ferlinghetti

Por Cassiano Elek Machado
De São Paulo

Lawrence Ferlinghetti era capitão de fragata na Segunda Guerra Mundial. Recorda-se bem do vento gelado que sacudia seu barco quando, com um quepe duas vezes maior do que sua cabeça, cruzou o Canal da Mancha em 6 de junho de 1944, o Dia D.

Ferlinghetti chegou de trem a Nagasaki, seis semanas depois do estouro do grande cogumelo atômico. Encontrou lá um interminável campo de palha que parecia ter sido queimado por maçaricos gigantes.

Ferlinghetti esteve preso na cadeia municipal de São Francisco em 1957, quando sua recém-fundada editora, City Lights Books, publicou o “subversivo” volume de poesia “Uivo”, de Allen Ginsberg, dando ignição para a Geração Beat. Ele esteve com Fidel Castro em Havana, em 1959; em Paris em 1968; em Woodstock em 1969; com os sandinistas na Nicarágua e com os zapatistas no México.

Lawrence Ferlinghetti está ao telefone em sua casa, em San Francisco (EUA), e não quer falar do passado. “Precisamos lutar pelo futuro. Ou respiramos e agimos agora ou acabaremos com tudo.”

Aos 93 anos, o poeta norte-americano acaba de publicar um volume de poesia com este mote, o livro “Time of Useful Consciousness” (New Directions), lançado há 20 dias nos Estados Unidos.

Sua vasta e contundente obra, que lhe rendeu prateleiras de prêmios, também ganha espaço no Brasil. A editora L&PM, que já havia lançado a principal obra poética de Ferlinghetti, “Um Parque de Diversões da Cabeça” (“A Coney Island of the Mind”, 1958), publica na próxima quinzena um dos raros livros de prosa do autor.

O breve romance “Amor nos Tempos de Fúria”, de 1988, narra uma inflamável história de amor entre uma artista e um banqueiro, ambientado na Paris de 1968.

Em entrevista à Folha, Ferlinghetti falou sobre esta obra, comentou seu novo trabalho poético e conclamou os leitores a lutarem por questões sociais: “Não fique aí sentado, seu estúpido!”.

Folha – O seu livro “Amor nos Tempos de Fúria” é dedicado a Fernando Pessoa. Você o fez para homenagear sua mãe, que era de origem portuguesa?
Lawrence Ferlinghetti – A família de minha mãe era mesmo portuguesa, eram sefarditas de uma cidade chamada Monsanto, em Portugal. Mas não cheguei a ter contato com este passado. O livro não homenageia a minha mãe, mas sim a Pessoa. Eu me inspirei no texto dele “O Banqueiro Anarquista”. Peguei deste texto toda a ideia central para meu livro.

O sr. se identifica com as ideias do “banqueiro”, que tem o sobrenome Mendes, assim como sua família?
É curioso, mas o termo anarquismo é usado hoje na imprensa americana como sinônimo de terrorismo. É uma completa ignorância à respeito da tradição anarquista.
Nos anos 50 todos éramos anarquistas. Mas nos anos 50 a população mundial era a metade da atual. Quando havia menos gente era possível ser um deles. Mas quando a população dobra algum nível de planificação da economia mundial se faz necessário.
Hoje eu me descreveria como socialista humanitário.

O sr. já disse que normalmente as pessoas costumam ficar mais conservadoras quando envelhecem e que com o sr. foi o oposto. Por que o sr. acredita que esteja ficando cada vez mais radical?
A pressão do tempo é que dita isso. Tempos radicais pedem respostas radicais. O mundo está num péssimo estado. Lembro que tive uma conversa com Günther Grass em 1975. Ele disse que acreditava que, no final do século 21, as nações tal como as conhecemos não existiriam mais e o mundo estaria coberto de hordas étnicas lutando por comida e abrigo. É uma visão terrível do futuro, mas não é impossível diante do que vivemos. Precisamos lutar.

O sr. se considera um ativista?
Quando alguém escreve para valer é, em essência, um ativista. É importante agir. Não dá para ficar sentado em casa. Não fique sentado aí, seu estúpido, o mundo está em chamas (risos).

“Time of Useful Consciousness”, título de seu novo livro, é um termo aeronáutico que trata do tempo que alguém tem num avião entre o momento em que fica sem oxigênio e a morte. É uma metáfora para a situação do ser humano?
É exatamente isso. Chegamos a um ponto de inflexão em termos de ecologia. Os maiores estudiosos do clima estão discutindo atualmente se a raça humana vai sobreviver a este século. Ou respiramos e agimos agora ou acabaremos com tudo muito em breve.

O sr. é conhecido por sua poesia, não pela prosa, e em ambas usa linguagens experimentais. Por que no romance que está saindo aqui o sr. usou um estilo mais convencional?
Quando escrevi “Her” [1960], meu romance anterior, estava interessado em trabalhar o fluxo de consciência. Estava influenciado por obras inovadoras como “Nadja”, de André Breton. “Amor nos Tempos de Fúria” foi escrito num momento diferente. Eu tinha voltado a morar em Paris, eram os anos 1980 e o Centro Georges Pompidou tinha digitalizado todos os jornais de 1968. Li tudo e achei que deveria ambientar um romance neste momento.

O sr. disse que releu o livro para esta entrevista. Gostou do que leu?
Sim, embora eu prefira o estilo de “Her”. O deste é mesmo mais convencional. É quase uma reportagem desta época, com a graça de usar como protagonista o personagem de Fernando Pessoa.

Há um mês o sr. deu uma de “Banqueiro Anarquista” e recusou um prêmio de € 50 mil por razões ideológicas, não?
Recusei o prêmio do PEN Club da Hungria depois de descobrir que parte do dinheiro vinha do governo daquele país, que hoje é um dos mais autoritários da Europa e cujo primeiro-ministro andou homenageando um nazista. Foi difícil negar o prêmio, porque € 50 mil é mais do que eu ganhei com poesia durante toda a minha vida, mas não tive escolha.

Mas “A Coney Island of the Mind” é considerado o livro mais vendido de um poeta vivo americano. Já vendeu um milhão de cópias…
Deve ser, mas em nenhum ano ganhei mais do que US$ 10 mil de royalties.

O sr. ainda vai à livraria que fundou, a City Lights?
Costumo dar um pulo lá de vez em quando, mas me aposentei do trabalho mais ativo. Você sabe, tenho 93 anos. Coloquei um pessoal mais jovem para tocar o negócio. Prefiro me dedicar à pintura e à poesia. No livro novo junto as duas, já que na capa há uma pintura minha.

A capa mostra um relógio com dois ponteiros quase sobrepostos…
É o tempo que está acabando. É um livro um pouco sombrio, mas, no final do poema, depois de escrever sobre os terríveis prognósticos para o planeta, eu escrevo “Chega, chega”. Eu tento encontrar alguma esperança no futuro. Nas últimas páginas há esta grande virada. Não queria terminar com um tom de desespero. Por isso é que, no final do livro, eu cito Walt Whitman, o eterno otimista.

O sr. costuma ser chamado de “o último beat”, mas já li declarações suas dizendo que não gosta do epíteto.
Eu me associei aos beats mais por ter sido editor deles. Mas minha poética é diferente. Minha poesia foi influenciada por franceses como Apollinaire, Jacques Prévert e outros voltados para a cultura europeia. Os beats não iam por esta linha. Havia outra diferença. Sou heterossexual. Metade dos beats era gay.

Quais as principais diferenças em termos poéticos?
A poesia de Allen Ginsberg era baseada na ideia do “primeiro pensamento, melhor pensamento”, um conceito que ele pegou do budismo. Jack Kerouac acreditava nisso. Você escreve a primeira coisa que aparece na sua cabeça, sem censura. É um modo profundo e verdadeiro de conceber poesia. O que você escreve primeiro é muito frequentemente melhor do que o que consegue depois de burilar o texto. Mas isso é mais verdadeiro se você é Ginsberg, um gênio com a mente original. Mas se você ensina isso para centenas de estudantes de poesia, como Kerouac fez numa escola em Colorado, não vai funcionar. As pessoas têm mentes comuns e produzirão alqueires de poesia chata. Ele pregava que as pessoas deveriam escrever sobre a primeira coisa que vissem logo que acordassem. Isso pode ser lindo no olhar de Ginsberg, mas não funciona para todos. Imagine: “Acordei. Vi minha escova de dentes. Ela caiu no chão. Abaixei para pegá-la”, fim do poema (risos).

 Na mesma matéria, Cassiano Elek Machado conta sobre os novos livros da Série Beats que serão lançados pela L&PM. Clique aqui para ler.