João Cruz e Sousa nasceu a 24 de novembro de 1861, na cidade de Nossa Senhora do Desterro (atual Florianópolis), capital da então Província de Santa Catarina. Filho de escravos alforriados, trazia nas artérias sangue sem mescla da África e, talvez, como escreveu Tasso da Silveira “no profundo psiquismo, milenárias forças adormecidas de angústia e sonho”.
Depois de uma vida de misérias, doenças e humilhações, morreu a 19 de março de 1898, na cidade de Sítio, em Minas, para onde fora transportado às pressas, vencido pela tuberculose e em busca de melhores ares. Em sua rápida vida de somente trinta e seis anos, percorreu todo um ciclo de experiências de grande sofrimento: preconceito racial, miséria, loucura da mulher, morte dos filhos, morte dos pais, indiferença da crítica e de outros escritores e poetas. Mas houve a conjunção de circunstâncias que resultaram no seu canto imortal. E é esse canto que importa, contrariando aqueles críticos que anunciavam que ele era um “negrinho mau rimador” e que não alcançaria o sucesso porque “tinha a cruz no nome e a noite na epiderme”.
Cruz e Sousa escreveu poesias a vida toda. Só uma parte foi organizada por ele mesmo para publicação: Missal, Broquéis, Últimos Sonetos, Evocações. Mas destas quatro, apenas duas foram publicadas enquanto ele estava vivo. Como colocou a professora e pesquisadora Zahidé Lipinaccci Muzart na introdução da edição de Broquéis da L&PM:
“Cruz e Sousa foi o verdadeiro poeta canibal, antecipando e muito Oswald de Andrade, os manifestos modernistas e as inquietações e estranhamentos da poesia do século XX. Leu, converteu, transformou diferenças e variedades, abrasileirou franceses, influenciou latino-americanos e continua até hoje a nos surpreender. Assimilou o que quis dos poetas que leu, deglutiu-os e vomitou-os em poemas fantásticos revirginados de seus precursores, reencontrando toda uma família de espíritos, uma verdadeira confraria, a dos criadores de fantasia! Foi um verdadeiro poeta moderno com todas as conotações da palavra em cada época. Como Baudelaire, na França, Cruz e Sousa, no Brasil, foi o introdutor da modernidade.”
Tulipa real
Carne opulenta, majestosa, fina,
Do sol gerada nos febris carinhos,
Há música, há cânticos, há vinhos
Na tua estranha boca sulferina.A forma delicada e alabastrina
Do teu corpo de límpidos arminhos
Tens a frescura virginal dos linhos
E da neve polar e cristalina.Deslumbramento de luxúria e gozo,
Vem dessa carne o travo aciduloso
De um fruto aberto aos tropicais mormaços.Teu coração lembra a orgia dos triclínios…
E os reis dormem bizarros e sanguíneos
Na seda branca e pulcra dos teus braços.