Façamos um exercício imaginativo, antes de iniciar a leitura deste clássico. No ano de 2015, um líder camponês emerge do interior do país, dos sertões (isto é, daquela ampla região do Brasil rural que pode ser definida em oposição ao litoral e longe das grandes cidades), e consegue fundar uma pequena comunidade que se recusa a obedecer às regras da República. Neste pequeno povoado imaginário, não se paga imposto, não há democracia, e todo poder emana da figura desse líder hipotético, que estipula regras moralmente muito rígidas – é proibido consumir bebidas alcoólicas, é proibido faltar aos cultos religiosos, homens e mulheres, para o bem da decência, não frequentam o mesmo espaço etc. – e prega à comunidade todas as noites, fazendo profecias revolucionárias e associando a República aos poderes do diabo. Como você acha que o governo federal reagiria a tal conjunto de dados, mesmo que não fossem estritamente verdadeiros? Agora imagine que um jornalista fervorosamente republicano, culto, com amplo domínio de diversas áreas do conhecimento humano, de um jornal do centro do país, digamos, de São Paulo, seja deslocado para cobrir in loco essa estranha revolta sertaneja…
Se nos acompanhou nessa pequena jogada de imaginação, o leitor conseguiu divisar boa parte dos fatores que envolve a escritura de Os Sertões, este caso raríssimo das letras não só brasileiras, mas americanas, misto de reportagem de guerra, ensaio documental e libelo político lançado em 1902.
O texto acima é o início da Apresentação de Os Sertões, livro de Euclides da Cunha que acaba de ser lançado na Coleção L&PM Pocket. Esta Apresentação, de 15 páginas, foi escrita em conjunto pelos doutores em Literatura Brasileira Luís Augusto Fischer, Guto Leite e Homero Vizeu Araújo e recupera alguns dados que ajudam a aproveitar ainda melhor a leitura deste grande clássico.
Em 1897, Euclides da Cunha foi enviado a Canudos, no interior da Bahia, como correspondente do jornal O Estado de S. Paulo. Lá, os seguidores de Antônio Conselheiro, o líder religioso que comandava a revolta, já haviam derrotado três expedições militares. Da região de Canudos, onde permaneceu durante dois meses, Euclides da Cunha ficou intensamente impressionado com as cenas de violência e miséria que viu. Foi nessa época que ele deu início ao que viria a ser Os Sertões.
Quando a primeira edição do livro foi lançada, trazia, em suas páginas, três fotografias captadas pelas lentes de Flávio de Barros, fotógrafo contratado pelo Exército.
O fotógrafo foi autor dos únicos registros até hoje conhecidos do dia a dia das tropas, da rendição e da destruição do arraial organizado por Antônio Conselheiro.
As três imagens escolhidas para ilustrar o livro foram rebatizadas por Euclides da Cunha. “Divisão Canet” ganhou o nome de “Monte Santo”. “7° Batalhão de Infantaria nas Trincheiras” virou “Acampamento dentro de Canudos”. E a mais emblemática de todas, “400 jagunços prisioneiros” ganhou o nome de “As prisioneiras”.
As dezenas de fotografias de Flávio de Barros sobre a Guerra de Canudos são atualmente disponibilizadas na Brasiliana Fotográfica e, em 2002, o Instituto Moreira Salles realizou a recuperação digital dos originais existentes nos acervos do Museu da República, no Rio de Janeiro, do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, em Salvador, e da Casa de Cultura Euclides da Cunha, em São José do Rio Pardo. Com a colaboração dessas instituições, a Brasiliana pode constituir um álbum canônico virtual gerado a partir do exemplar em melhor estado de conservação existente em cada uma das apenas setenta imagens conhecidas do evento. Clique aqui para conhecer.
Além de Flávio de Barros, outro fotógrafo foi enviado a Canudos em abril de 1897. Seu nome era Juan Gutierrez de Padilla e ele foi mortalmente ferido em 28 de junho daquele mesmo ano. Até hoje, não se conhece nenhum registro fotográfico que Padilla tenha feito do conflito. Em Os Sertões, Euclides da Cunha referiu-se a ele como um “Oficial honorário, um artista que fora até lá atraído pela estética sombria das batalhas”.