Guilherme da Silva Braga enfrentou o desafio de traduzir Jack Kerouac: Visões de Cody, Big Sur e agora Anjos da desolação, que deverá ser lançado no início do segundo sementre de 2010. Obras viscerais de um autor que marcou o século XX, que inovou na linguagem e segue sendo contemporâneo, e que chega até nós na versão impecável de Guilherme que narra, abaixo, o duro caminho que percorreu para traduzir o texto e a alma de Kerouac.
Por Guilherme da Silva Braga
Depois de três meses de trabalhos começados logo após o Ano-Novo e de quase quatrocentas páginas de prosa ensandecida, hoje terminei a tradução de mais um livro do Kerouac, que vai sair em português pela L&PM com o título de Anjos da desolação (“Desolation Angels”). Assim como aconteceu com Visões de Cody, essa é a primeira tradução de Anjos da desolação para o português, o que é uma ótima notícia para os leitores ávidos por novidade.
Não sei se algum leitor faz idéia, mas esse jeitão largado dos textos do Kerouac pode ser um tanto intimidador para quem traduz, mesmo quando a gente trabalha com o maior cuidado e o maior respeito pelo texto. Quando terminei a minha tradução do difícil poema Mar, que encerra o Big Sur, por exemplo, foi um grande incentivo descobrir que a tradução do Paulo Henriques Britto (Brasiliense, 1985) – embora muito diferente da minha – tinha dado um tratamento mais ou menos similar ao texto. Faz bem saber que o que a gente está fazendo não é uma loucura e que outros tradutores de reconhecida competência e talento tomaram decisões parecidas quando precisaram.
Um bom começo para quem quer conhecer Kerouac
Digo sem dúvida que Anjos da desolação é o meu livro favorito do Kerouac até o momento, bem como uma excelente apresentação para quem nunca leu nenhuma obra do cara. Anjos da desolação não é tão surtado quanto Visões de Cody, mas ainda assim quaisquer concessões à “arte do bem escrever” no sentido acadêmico-babaca do termo passaram longe: Kerouac acerta a mão na escrita de sua prosa tipicamente escalafobética, mantendo a estranheza, a espontaneidade e o experimentalismo subversivo do texto, porém sem descambar o tempo inteiro para o absurdo. O resultado é um livro a um só tempo mais cativante e de leitura mais agradável.
Como de costume, em Anjos da desolação Kerouac faz da vida uma aventura e relata desde as experiências espirituais que teve durante a solidão prolongada no topo do Desolation Peak, onde trabalhou como vigia de incêndios, até cenas absolutamente hilárias ao lado dos amigos Allen Ginsberg, Peter Orlovsky, Lafcadio Orlovsky e Gregory Corso na Cidade do México – tudo regado a viagens, garotas, alegrias, bebidas, paranoias, tristezas e ternuras, como qualquer leitor devoto está cansado de saber.
Como tradutor que sou, no entanto, não me cabe contar a história do livro, mas apenas a da tradução. Anjos da desolação, diferente do que ocorreu em Visões de Cody, não virá acompanhado de nenhuma nota introdutória minha sobre a tradução, uma vez que as dificuldades que apresenta – embora não tenham faltado – não são nem tão específicas nem tão extremas a ponto de justificar a tal nota. O que não me impede de escrever estas breves palavras sobre alguns dos percalços que enfrentei com tanta alegria durante a tradução da obra, claro.
Ao contrário do que reza a cartilha tradutória – mas a exemplo do que quase todos os tradutores literários que conheço e com quem já troquei idéias fazem –, não costumo ler os livros que traduzo antes de começar a traduzi-los. No caso específico do Kerouac, parece-me que abrir mão de uma leitura prévia pode ter o benéfico efeito colateral de manter o frescor do texto, o que evidentemente não me dispensa, ao cabo da tradução, de reler todo o texto produzido em português uma segunda vez com o maior cuidado possível para corrigir erros, completar lacunas e aparar arestas a fim de deixar o texto o mais fluente possível.
Cada página, um desafio
Tenho certeza de que há quem pegue os livros do Kerouac – seja no original, seja em uma tradução minha ou dos outros valentes tradutores que arriscaram o pescoço nas outras versões brasileiras dos livros do autor – e pense que é fácil escrever ou traduzir prosa em um estilo mais livre, já que certas preocupações com correção gramatical, coerência e coesão textual vão em boa parte para o espaço. O que menos gente percebe é que toda essa liberdade estilística gera um conjunto muito particular de problemas tradutórios. Um dos aspectos mais gritantes, no caso específico de Kerouac, é o som e o ritmo da prosa original, dotada de uma naturalidade incrível, que a faz soar quase como se fosse de fato um texto falado – o que às vezes de fato acontece, como por exemplo no enorme capítulo de Visões de Cody intitulado Frisco: a fita. Assim, um dos grandes desafios de traduzir Kerouac é manter essa espontaneidade, essa vivacidade da língua falada no texto escrito – algo que não estamos acostumados a ver. Muito do que pode parecer desleixo e improviso destrambelhado quando escrito na página soa exatamente como falaríamos no dia-a-dia se lido em voz alta com a entonação adequada (verdade que em certos casos soa tal como falaríamos depois de tomar um porre, mas ainda assim o efeito de verossimilhança permanece).
Os diálogos, um dos pontos altos
Outro aspecto muito comentado e raras vezes explicado quando se fala sobre tradução é a necessidade de conferir a cada personagem uma voz própria. As primeiras vezes em que ouvi falar a respeito, não entendi muito bem como esse efeito seria alcançado. Mas durante a tradução de Visões de Cody descobri um caminho que tem me prestado bons serviços e me permitido dar uma cara própria às falas de Kerouac, Neal Cassady, Gregory Corso, Allen Ginsberg, William Burroughs e o resto desse pessoal. No texto original, o modo como alguns dos personagens falam – Cassady em particular – é tão flagrantemente diferente dos demais que me vi obrigado a elaborar um guia pessoal de estilo para os diferentes protagonistas, a fim de registrar as peculiaridades que eu conferi, em português, à fala de cada um. Assim, nas minhas traduções, o leitor notará por exemplo que Cassady prefere a forma “cê” em vez de “você”, e que Kerouac e Ginsberg falam “teu”, enquanto Corso fala “seu”. Claro, esses são apenas exemplos simplórios, mas depois de traduzir três livros de Kerouac – Visões de Cody, Big Sur e agora Anjos da desolação, com um quarto livro do autor já em vista – o meu pequeno guia cresceu a ponto de incluir expressões e maneirismos menos óbvios, como “fiadaputa” (em geral dito por Neal Cassady), “tá legal” (Gregory Corso), “hmmm” (William Burroughs) e “volta e meia” (Jack Kerouac). É óbvio que estas são apenas orientações gerais que elaborei para a minha própria consulta e não regras infalíveis a que me ative de maneira obstinada – o que sequer seria desejável –, mas de qualquer modo pareceu-me que adotar este ou aquele modo de dizer dependendo de quem está falando seria uma boa forma de marcar a individualidade dos personagens nos diálogos.
Os diálogos de Anjos da desolação, aliás, são um dos pontos mais altos do livro. Em algumas das melhores cenas, Gregory Corso, sempre aos berros, faz um breve e inflamado discurso sobre a beleza e a verdade para os atônitos passageiros de um ônibus; Allen Ginsberg trava uma divertidíssima conversa trilíngüe em que mistura inglês (português), espanhol e francês para pechinchar o aluguel de um apartamento na Cidade do México com a senhoria; e Lafcadio, o irmão parcialmente catatônico de Peter Orlovsky, insiste em fazer perguntas sobre os sonhos de Kerouac.
Agora é só esperar mais alguns meses para o livro chegar às livrarias.