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Emma Bovary X Gemma Bovery

Estreou esta semana um filme chamado “Gemma Bovery”. Um trocadilho? Uma brincadeira? Uma releitura? Ou uma homenagem àquela que é uma das mais famosas personagens femininas da literatura, Emma Bovary? Talvez seja de tudo um pouco…

O longa metragem é descrito como uma “comédia dramática” e por aqui ganhou o subtítulo de “A vida imita a arte”. Dirigido pela francesa Anne Fontaine, foi adaptado a partir da graphic novel da britânica Posy Simmonds. A história é centrada na personagem Gemma Bovery, uma bela inglesinha que, ao se mudar para a região francesa da Normandia com seu marido Charles, desperta um turbilhão de sentimentos em seu vizinho Martin, produtor de deliciosos pães e fã de literatura.

Martin logo percebe as coincidências entre a nova moradora local e seu livro favorito, o clássico romance de Gustave Flaubert “Madame Bovary”, começando, claro, pelo nome da moça e o de seu marido, sem contar que foi na região da Normandia que Flaubert escreveu seu famoso livro.

E por falar em coincidência (se é que essa é uma), o nome da atriz também é Gemma: Gemma Arterton.

Assista ao trailer:

A L&PM publica Madame Bovary na Coleção L&PM Pocket e já lançou dois dos três volumes de O idiota da família, a biografia de Gustave Flaubert, escrita por Jean-Paul Sartre.

Academia Sueca revela carta em que Sartre avisava que recusaria o Nobel

Ao vencer o Prêmio Nobel de Literatura em 1964 Jean-Paul Sartre recusou o prêmio. Até aí nenhuma novidade. O que se descobriu agora é que essa saia justa poderia ter sido evitada caso uma carta enviado por Sartre à Academia Sueca, responsável pelo prêmio, não tivesse demorado para chegar. Em uma mensagem escrita em outubro daquele ano, Sartre pedia que não fosse cotado para o prêmio, pois caso vencesse não aceitaria.

Só que, quando a carta foi entregue em Estocolmo, Sartre já estava entre os indicados. Semanas depois, o filósofo francês foi anunciado vencedor e, como tinha avisado, recusou o prêmio. A recusa, aliás, entrou para a história como o caso mais famoso e surpreendente de alguém que tinha dito “não” à Academia Sueca.

Sartre nobel

Em um texto publicado pouco depois do episódio no jornal “Le Monde”, Sartre lamentou o fato de sua decisão ter se tornado um escândalo. “Um prêmio foi oferecido e eu recusei”, escreveu ele. “Não sabia que essa decisão era tomada sem o conhecimento do vencedor, e acreditava ainda estar em tempo de evitar o ocorrido.”

A existência da carta em que Sartre avisava que não aceitaria o prêmio só veio à tona no final de 2014, em uma reportagem do diário sueco “Svenska Dagbladet”. Isso porque a Academia Sueca mantém sigilo de 50 anos sobre os bastidores de todas as decisões tomadas.

Na época da recusa, Sartre já havia publicado os três primeiros volumes de O idiota da família, a biografia de Gustave Flaubert que é publicada pela L&PM.

“O idiota da família” no jornal O Globo

Leia matéria do jornalista Fernando Eichenberg sobre o lançamento de O idiota da família, escrita diretamente de Paris e publicada no Caderno Prosa e Verso do jornal O Globo em 8 de fevereiro de 2013. Clique nas imagens para ampliá-las.

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‘O idiota da família’: uma vida passada a limpo, por Ivo Barroso

Por Ivo Barroso*

Razão tinha Flaubert quando declarou “Madame Bovary sou eu”. O comportamento dúbio, as reações sentimentais da personagem, seu modo de agir e raciocinar eram todos reflexos de condições psíquicas a que ele se impunha para analisá-las com cuidado e detença. É sabida a morosidade com que compunha seus livros, não só no que respeita à elaboração do estilo, cujas frases revia incansavelmente, mas também no ajuste final de cada gesto e de cada palavra dos seres que animava.

Sua biografia não revela grandes lances: solteirão de muitos amores mas poucas ligações permanentes, arredio da grande cidade, avesso a qualquer tipo de convenções (“As honrarias desonram, os títulos degradam, os empregos entorpecem”), Gustave Flaubert havia se refugiado na literatura, em sua propriedade rural de Canteleu-Croisset, para vencer sua aversão pela tolice humana. Esse recolhimento campestre teve, no entanto, outros determinantes. Flaubert sofria de epilepsia psicogênica, e seu pai, cirurgião-chefe no hospital de Rouen, achou conveniente que o jovem trancasse matrícula no curso de Direito em Paris e se recolhesse à província, onde seria mais bem assistido pela família. Ideal para ele, que só pensava em escrever. Mas alguns infortúnios domésticos iriam marcá-lo: o irmão mais velho, Achille, médico-cirurgião como o pai, acabou louco; a irmã Caroline, por quem tinha manifesta afeição, casou-se em 1845 com Emile Hamard e teve uma filha de mesmo nome, morrendo em seguida; Flaubert assumiu a criação da menina, pois Hamard, desesperado, enlouqueceu após a morte da esposa. O pai, seu grande esteio, morreu no ano seguinte. Restou-lhe a sra. Flaubert, descrita por ele como sua carcereira, confidente, ama, paciente, banqueira e crítica.

Contudo, muitos são os amigos fieis que o cercam, como Louis Bouilhet e Maxim du Champ, este com quem viaja para o Egito, Palestina, Grécia etc., dilapidando boa parte da herança que lhe coubera com a morte do pai. E grande é o número de correspondentes e confidentes, aos quais escreve montanhas de cartas (hoje reunidas em cinco volumes), comentando projetos literários e afãs amorosos. Visto como o “carrasco de si mesmo”, esse cultor do mot juste tornou-se um dos maiores estilistas da literatura francesa do século XIX. Seus livros mais conhecidos (“Salambô“, “Madame Bovary”, “Bouvard e Pécuchet”) trouxeram-lhe grande fama e sucesso financeiro, embora outros, como “A educação sentimental” e “A tentação de Santo Antão” não alcançassem o grande público, e, neste último caso, houvesse até a insistência dos amigos para que o jogasse fora.

Por sua importância literária era natural que Flaubert despertasse a atenção de muitos biógrafos, alguns dos quais da importância de Henry James, Guy de Maupassant, Emile Faguet e Jules Goncourt, interesse que persiste mesmo em nossos dias com a premiada biografia de Frederick Brown (2006).

Em 1971, o filósofo existencialista Jean-Paul Sartre surpreendeu seus leitores com a publicação do primeiro volume de uma biografia de Flaubert intitulada “O idiota da família”. O livro tinha cerca de 1000 páginas, anunciava-se um segundo tomo já para o ano seguinte e havia o plano da publicação de mais outros dois volumes que sairiam em datas não muito distantes. Indagado sobre seu interesse por Flaubert, Sartre respondeu que via nele o seu antípoda, mas que o admirava exatamente por isso, em vez de desprezá-lo. A novidade maior do empreendimento, além de seu indubitável apelo épatant, estava (segundo o autor) na aplicação de um método investigativo que conjugava existencialismo, psicanálise e crítica literária, a fim de tratar o assunto (a vida de um autor) em sua globalidade definitiva. O objetivo foi sem dúvida obtido e a análise de fato vasculha da adega ao sótão, mas depreende-se igualmente da leitura que Sartre quis fazer uma “revisão” completa de Flaubert, como escritor e como ser humano, talvez para “aproximá-lo” um pouco mais de si. Dessa forma, poderíamos imaginar que Sartre quis fazer com Flaubert o que este fazia com seus personagens: incorporar-se neles.

Logo no início, por exemplo, Sartre se vale de um depoimento de Caroline, a sobrinha querida de Flaubert, e embora lhe dê todo o crédito, disseca-lhe as palavras como que para redesenhá-las de modo a que signifiquem a mesma coisa, mas insinuando outras mais. Cada momento da vida de Flaubert é, assim, passado a limpo, ou melhor, reanalisado de modo a aproximá-lo de seu biógrafo, aqui transformado num deus todo-poderoso capaz de reformular o destino. Sem dúvida, um trabalho de amor, de aprimoramento, talvez um impulso de fazer por outrem o que não foi possível (ou desejável) fazer para si mesmo. O resultado final é uma obra-prima do enfoque biográfico, a transformação do reflexo no espelho na imagem mental do refletido. Sartre conseguiu com esta obra assemelhar-se literariamente ao mestre amado a quem odiava no princípio.

*Ivo Barroso é tradutor e poeta

No prefácio de “O idiota da família”, Sartre explica por que escolheu Flaubert

O idiota da família é a continuação de Questões de método. Seu tema: o que se pode saber de um homem, hoje em dia? Pareceu-me que só poderíamos responder a esta pergunta através do estudo de um caso concreto: o que sabemos – por exemplo – de Gustave Flaubert? Para isso, precisaremos totalizar as informações de que dispomos a seu respeito. Nada prova, a princípio, que essa totalização seja possível e que a verdade de uma pessoa não seja plural; os dados são muito

diferentes por natureza: ele nasceu em dezembro de 1821, em Rouen – eis um tipo; ele escreveu à amante, muito tempo depois: “A Arte me espanta” – eis outro. O primeiro é um fato objetivo e social, confirmado por documentos oficiais; o segundo, também objetivo quando nós nos atemos à coisa dita, remete, por seu significado, a um sentimento vivido, e nada decidiremos sobre o sentido e o alcance desse sentimento se antes não tivermos estabelecido se Gustave é sincero, em geral e, em especial, nesta circunstância. Não correremos o risco de chegar a camadas de significados heterogêneos e irredutíveis? Este livro tenta provar que a irredutibilidade é apenas aparente e que cada informação, colocada em seu devido lugar, torna-se a parte de um todo que está constantemente sendo feito e, ao mesmo tempo, revela sua profunda homogeneidade com todas as outras partes.

Afinal, um homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamá-lo de universal singular: totalizado e, por isso mesmo, universalizado por sua época, ele a retotaliza ao reproduzir-se nela como singularidade. Universal pela universalidade singular da história humana, singular pela singularidade universalizante de seus projetos, ele exige ser estudado a um só tempo pelas duas pontas. Precisaremos encontrar um método apropriado. Apresentei os princípios de um em 1958 e não repetirei o que disse então: prefiro mostrar, sempre que necessário, como ele se faz no próprio trabalho para obedecer às exigências de seu objeto.

Uma última palavra: por que Flaubert? Por três motivos. O primeiro, bastante pessoal, há muito tempo deixou de valer, apesar de estar na origem dessa escolha: em 1943, ao reler sua Correspondência na má edição Charpentier, tive a sensação de ter contas a ajustar com ele e de que devia, para isso, conhecê-lo melhor. Desde então, minha antipatia inicial transformou-se em empatia, única atitude exigida para compreender. Por outro lado, ele se objetivou em seus livros. Qualquer um pode dizer: “Gustave Flaubert é o autor de Madame Bovary”. Mas qual a relação do homem com a obra? Eu nunca falei sobre isso até então. Nem ninguém, que eu saiba. Veremos que é dupla: Madame Bovary é derrota e vitória; o homem que se mostra na derrota não é o mesmo exigido para sua vitória; será preciso entender o que isso significa. Por fim, suas primeiras obras e sua correspondência (treze volumes publicados) manifestam-se, veremos, como a mais estranha confidência, a mais facilmente decifrável: como se ouvíssemos um neurótico falando “ao acaso” no divã do psicanalista. Acreditei que me seria permitido, para esta difícil provação, escolher um tema fácil, que se revelasse com facilidade e sem o saber. Acrescento que Flaubert, criador do romance “moderno”, está na interseção de todos os nossos problemas literários de hoje.

Agora, é preciso começar. Como? Pelo quê? Pouco importa: podemos entrar em um morto da maneira que quisermos. O essencial é partir de um problema. Daquele que escolhi, em geral pouco se fala. Leiamos, no entanto, um trecho de uma carta à srta. Leroyer de Chantepie: “É de tanto trabalhar que consigo calar minha melancolia natural. Mas o velho fundo muitas vezes reaparece, o velho fundo que ninguém conhece, a chaga profunda sempre escondida”.* O que isso quer dizer? Uma chaga pode ser natural? De todo modo, Flaubert nos remete à sua proto-história. O que se precisa tentar conhecer é a origem dessa chaga “sempre escondida” e que, de todo modo, tem origem em sua primeira infância. Este não será, acredito, um mau começo. (Jean-Paul Sartre, Prefácio de O idiota da família)

Em 7 de maior de 1971, o "Figaro littéraire" publicou uma caricatura feito por J. Redon em que Sartre vai se transformando em Flaubert

Em 7 de maior de 1971, o “Figaro littéraire” publicou uma caricatura feito por J. Redon em que Sartre vai se transformando em Flaubert

Flaubert por Sartre

Em 12 de dezembro de 1821 nascia Gustave Flaubert, cuja vida foi desvendada por Jean-Paul Sartre em O idiota da família, que chega ao Brasil pela L&PM em 2014. Para celebrar o aniversário do autor de Madame Bovary – enquanto a tão aguardada biografia não chega – leia o trecho inicial para ter um gostinho do que vem por aí:

“Quando o pequeno Gustave Flaubert, perdido, ainda “bestial”, emerge da primeira infância, as técnicas estão à sua espera. E os papéis. O adestramento começa: não sem sucesso, ao que parece; ninguém nos diz, por exemplo, que tenha tido problemas para caminhar. Pelo contrário, sabemos que o futuro escritor tropeçou foi quando se tratou da prova primordial, o aprendizado das palavras. Tentaremos ver, mais adiante, se teve, desde o princípio, dificuldades para falar. O certo é que se saiu mal em outra prova linguística, iniciação e rito de passagem, a alfabetização: uma testemunha conta que o menino aprendeu a ler muito tarde e que seus familiares o tinham então por criança retardada.”

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É dia de Jean-Paul Sartre

Jean-Paul Sartre nasceu no início do verão parisiense, em 21 de junho de 1905. Livre pensador, filósofo, escritor, dramaturgo, foi uma das personalidades mais marcantes do século XX, ao lado de sua companheira, Simone de Beauvoir. A última obra que produziu foi o grande ensaio “O idiota da família”, uma incrível biografia do escritor Gustave Flaubert, dividida em três generosos volumes. “O idiota da família” será publicado pela primeira vez em português pela L&PM Editores. O primeiro volume sai ainda este ano. 

Jean-Paul Sartre em 1906, aos 8 meses

Jean-Paul Sartre em 1906, aos 8 meses

Simone e Sartre em momento 007 em junho de 1929

Simone e Sartre em momento 007 em junho de 1929

Simone e Sartre em um encontro com Che Guevara

Simone e Sartre em um encontro com Che Guevara em 1960

Sartre sentado nas dunas de Nida, na Lituânia, em 1965

Sartre sentado nas dunas de Nida, na Lituânia, em 1965

Sartre e Michel Foucault durante passeata em maio de 1968. "Sou testemunha, estou aqui para testemunhar a história", disse ele.

Sartre e Michel Foucault durante passeata em maio de 1968. “Sou testemunha, estou aqui para testemunhar a história”, disse ele.

SImone e Sartre no Rio de Janeiro em 1969.

SImone e Sartre no Rio de Janeiro em 1969.

De Jean-Paul Sartre, a Coleção L&PM Pocket publica A imaginação e Esboço para uma teoria das emoções. A editora também possui em seu catálogo Sartre – uma biografia e Sartre, livros de Annie Cohen-Solal, considerada a principal biógrafa do pensador.

Um grande presente para os fãs de Flaubert: o prefácio de “O idiota da família”

Gustave Flaubert nasceu em 12 de dezembro de 1821. Um gênio que daria origem à Madame Bovary, mas que quando criança foi considerado literalmente um idiota. Jean-Paul Sartre era obcecado por ele. Tanto que dedicou anos da sua vida a escrever a biografia definitiva de Flaubert. Em O idiota da família, Sartre proporciona ao leitor um livro de cerca de 3.000 páginas, dividido em três tomos, que é lido como uma grande aventura. Até hoje inédito em língua portuguesa, O idiota da família finalmente poderá chegar às mãos dos brasileiros em nossa língua mater. A L&PM Editores já recebeu da tradutora Júlia da Rosa Simões as primeiras mil páginas do volume 1 que será lançado em meados de 2013. E como hoje é aniversário de Flaubert, aqui vai um presente a todos aqueles que aguardam ansiosamente a chegada deste que é considerado um projeto soberbo, o livro que encerra a obra sartriana. Com vocês, o prefácio de O idiota da família finalmente em português:

PREFÁCIO

O idiota da família é a continuação de Questões de método. Seu tema: o que podemos saber de um homem, hoje em dia? Pareceu-me que só poderíamos responder a essa pergunta através do estudo de um caso concreto: o que sabemos – por exemplo – de Gustave Flaubert? Isso significa totalizar as informações de que dispomos sobre ele. Nada prova, de início, que essa totalização seja possível e que a verdade de uma pessoa não seja plural; os dados são muito diferentes por natureza: ele nasceu em dezembro de 1821, em Rouen ­– eis um; ele escreve à amante, muito tempo depois: “A Arte me espanta” – eis outro. O primeiro é um fato objetivo e social, confirmado por documentos oficiais; o segundo, também objetivo quando nos atemos à coisa dita, por seu significado remete a um sentimento vivido, e nada decidiremos sobre o sentido e o alcance desse sentimento se antes não tivermos estabelecido se Gustave é sincero, em geral e, particularmente, nesta circunstância. Não corremos o risco de chegar a camadas de significados heterogêneos e irredutíveis? Este livro tenta provar que a irredutibilidade é apenas aparente e que cada informação colocada em seu devido lugar torna-se a parte de um todo que continua a fazer-se e, ao mesmo tempo, revela sua profunda homogeneidade com todas as outras.

Porque um homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamá-lo de universal singular: totalizado e, por isso mesmo, universalizado por sua época, ele a retotaliza ao reproduzir-se nela como singularidade. Universal pela universalidade singular da história humana, singular pela singularidade universalizante de seus projetos, ele exige ser estudado simultaneamente pelas duas pontas. Precisaremos encontrar um método apropriado. Apresentei os princípios de um em 1958 e não repetirei o que disse então: prefiro mostrar, cada vez que necessário, como ele se faz no próprio trabalho para obedecer às exigências de seu objeto.

Uma última palavra: por que Flaubert? Por três motivos. O primeiro, bastante pessoal, há muito tempo deixou de valer, apesar de estar na origem dessa escolha: em 1943, ao reler sua Correspondência na má edição Charpentier, tive a sensação de ter contas a ajustar com ele e que devia, com vistas a isso, conhecê-lo melhor. Desde então, minha antipatia inicial transformou-se em empatia, única atitude exigida para compreender. Por outro lado, ele se objetivou em seus livros. Qualquer pessoa dirá: “Gustave Flaubert é o autor de Madame Bovary”. Qual, então, a relação do homem com a obra? Eu nunca o disse até agora. Nem ninguém, que eu saiba. Veremos que é dupla: Madame Bovary é derrota e vitória; o homem que se manifesta na derrota não é o mesmo exigido para sua vitória; será preciso entender o que isso significa. Por fim, suas primeiras obras e sua correspondência (treze volumes publicados) manifestam-se, veremos, como a confidência mais estranha, a mais facilmente decifrável: como se ouvíssemos um neurótico falando “ao acaso” no divã do psicanalista. Acreditei que seria permitido, para esta difícil demonstração, escolher um tema fácil, que se revela facilmente e sem o saber. Acrescento que Flaubert, criador do romance “moderno”, está na interseção de todos os nossos problemas literários de hoje.

Agora, é preciso começar. Como? Pelo quê? Pouco importa: penetramos em um morto da maneira que quisermos. O essencial é partir de um problema. Daquele que escolhi, geralmente pouco se fala. Leiamos, no entanto, essa passagem de uma carta à srta. Leroyer de Chantepie: “É de tanto trabalhar que consigo calar minha melancolia natural. Mas o velho fundo muitas vezes reaparece, o velho fundo que ninguém conhece, a chaga profunda sempre escondida”[1]. O que isso quer dizer? Uma chaga pode ser natural? Seja como for, Flaubert nos remete à sua proto-história. O que se precisa tentar conhecer é a origem dessa chaga “sempre escondida” e que, em todo caso, tem origem em sua primeira infância. Este não será, acredito, um mau começo.

[1]Croisset, 6 de outubro de 1864.

Lançamento de peso: os três volumes de "O idiota da família" na edição francesa. O primeiro volume chega em meados de 2013 pela L&PM

Pela primeira vez em português: “O idiota da família”, de Sartre

“Flaubert representa, para mim, exatamente o contrário da minha própria concepção da literatura: um alienamento total e a procura de um ideal formal que não é, de modo algum, o meu…”. A frase, dita por Jean-Paul Sartre, talvez justifique a obsessão dele por Flaubert. Obsessão essa que consumiu anos da vida do escritor e o levou a escrever a biografia definitiva do autor de Madame Bovary. Em O idiota da família, Sartre proporciona ao leitor um livro enorme, dividido em três tomos, que é lido como uma grande aventura. É uma investigação minuciosa e maníaca do início da infância do menino Gustave, literalmente o idiota da família, em que Sartre procura, nas trajetórias individuais do pai, da mãe, do irmão mais velho, da irmã caçula, nas características socioeconômicas da família Flaubert, nos acontecimentos históricos da época, elementos de explicação para essa estranha criança que foi Gustave: espremido entre os irmãos, meio apatetado, que aos sete anos ainda não sabia ler, mas aos treze já escrevia cartas e livros.

O contrato para a publicação de O idiota da família em português acaba de ser assinado e a tradutora Júlia da Rosa Simões já começou a tradução do volume 1 que será lançado em 2013. Ou seja: finalmente os brasileiros poderão ler – em português – este que é considerado um projeto soberbo, o livro que encerra a obra sartriana.

Houve um momento, no final dos anos 1960, em que a maioria dos críticos considerou a carreira literária de Jean Paul Sartre esgotada e encerrada. Foi quando o grande filósofo e escritor surpreendeu o mundo com as quase 3000 páginas – impecavelmente escritas – dos três volumes d’O Idiota da Família, um estudo sem precedentes da vida e da obra de Gustave Flaubert, que na infância chegou a ser considerado quase um débil mental e, na idade madura, com devoção de sacerdote e o trabalho obstinado de operário, construiu o monumento Madame Bovary. Sartre percorreu as páginas do grande romance de Flaubert com um olhar inteiramente novo, descobrindo as delicadas linhas que ligaram a vida pessoal do escritor e a sua extraordinária ficção. O idiota da infância, percebeu Sartre, transformou-se num gênio capaz de sublimar sua própria fragilidade. A leitura dessa obra colossal deixa uma suspeita inevitável: talvez Flaubert tenha sido para Sartre o que Madame Bovary foi para Flaubert. (Palavras do escritor, jornalista e advogado José Antônio Pinheiro Machado, o Anonymus Gourmet, que leu a obra em francês)

Os três volumes em francês de "O idiota da família" que serão publicados pela L&PM

Os últimos dias de Tolstói

Em 1910, Leon Tolstói já contava 82 anos. Mas nem a idade avançada e a saúde frágil o fizeram perder de vista a coerência entre seu modo de vida e seus ideais. Apesar da pressão de sua esposa para que lhe deixasse em testamento os direitos sobre sua obra, ele resolveu fazer o que achava certo: modificou seu testamento sem que ela soubesse. Para garantir que sua obra se tornasse pública após sua morte, todos os direitos foram deixados como herança para um de seus discípulos mais fiéis.

Feito isto, o melhor a fazer era abandonar tudo e fugir em busca de uma vida diferente. Ao deixar a mansão na calada da noite para uma longa viagem de trem, Tolstói renunciava definitivamente à família, à propriedade, mas também à própria vida. O frio, a fumaça e as péssimas acomodações dos vagões da terceira classe (já que luxo e conforto não estavam em acordo com a vida simples que buscava) lhe renderam uma penumonia, que se agravou rapidamente e culminou em sua morte no dia 20 de novembro de 1910, aos 82 anos, numa modesta estação de trem em Astapovo, cercado de curiosos, seguidores fanáticos, e de uma das filhas, a única da família que aderiu à sua cruzada.

A saga dos últimos meses de vida do autor de Guerra e paz está contada no filme A última estação (2009), do diretor Michael Hoffman, lançado em 2009. Emocionante e intenso, o longa traz Christopher Plummer no papel de Tolstói e Dame Helen Mirren como sua esposa Sofia. Veja o trailer:

Aristocrata russo, filho do conde Nicolau Ilich Tolstói e da princesa Maria Nikolayevna Volkonski, Leon Tolstói teve uma infância carente e complicada. Sua mãe morreu quando ele tinha dois anos e seu pai foi vítima fatal de uma apoplexia antes do pequeno Leon completar dez anos. Ele e os três irmãos foram criados por parentes próximos na província de Kazan. Já adulto e incentivado por seu irmão, o tenente Nicolai Tolstói, Leon alistou-se no exército e participou da guerra da Turquia e da guerra da Criméia, onde conheceu profundamente a vida militar, os horrores e os heroísmos de uma guerra. Quando finalmente desligou-se do exército, já com 30 anos, ele conheceu a bela e moscovita Sofia, com quem se casou e teve 13 filhos. Foi neste período que ele escreveu suas obras mais conhecidas: Guerra e paz e Anna Karenina.

Anarquista convicto, Tolstói era admirado pelo filósofo Joseph Proudhon, cujas ideias coincidiam com a filosofia que ele difundia entre seus empregados e vizinhos. Seus escritos foram aplaudidos também por seus contemporâneos russos Fiódor Dostoiévski, Ivan Turguêniev e Anton Tchékhov e festejados por Gustave Flaubert, que comparou-o a William Shakespeare.

No final de sua vida, trocou intensa correspondência com Mahatma Ghandi, cuja teoria de resistência não-violenta tinha muito em comum com suas teses, inclusive as que ficaram imortalizadas no tratado pacifista Guerra e paz, uma das maiores obras da literatura mundial – não só em volume de páginas mas também em excelência literária.

Na apresentação da edição de bolso de Guerra e Paz publicada pela L&PM em 4 volumes, o editor Ivan Pinheiro Machado faz a seguinte comparação: “Guernica de Pablo Picasso está para o povo espanhol assim como Guerra e paz de Leon Tolstói está para o povo russo”.

Já não resta dúvidas de que este livro é leitura obrigatória, né? 🙂

Autor de hoje: Gustave Flaubert

Rouen, França, 1821 – † Croisset, França, 1880

Filho de um cirurgião francês, estudou no colégio Real, na França, onde conheceu a literatura através de poemas, reconstituições históricas e romances. Em 1840, frequentou a faculdade de Direito em Paris, mas abandonou os estudos para viajar à África do Sul e ao Oriente. Depois disso, recolheu-se a um sítio em Croisset, na França, onde viveu solitário por cerca de trinta anos. Um caso de adultério, seguido do suicídio da mulher, inspirou o romance Madame Bovary. Pouco compreendido à época, o livro veio a tornar-se um clássico. O prestígio de Flaubert como escritor deve-se, sobretudo, à criação de um estilo literário elegante, rigoroso e claro. Ao questionar a incompreensão burguesa, sua obra tenta superar a herança romântica, estabelecendo os paradigmas do romance ocidental.

OBRAS PRINCIPAIS: Madame Bovary, 1857; Salambô, 1862; A educação sentimental, 1869; Três contos, 1877; Bouvard e Pécuchet, 1881

GUSTAVE FLAUBERT por Maria Luiza Berwanger da Silva

Madame Bovary, c’est moi. Madame Bovary ou le roman sur le rien. A obra de Gustave Flaubert, vista como um todo, desloca-se entre estas duas margens, da profunda subjetividade à inapagável negatividade, margens nas quais a voz do sujeito só se faz ouvir para se diluir no indistinto e no inominável, como se o trânsito entre ângulos paradoxais diminuísse o espaço entre fronteiras, espaços e territorialidades. Assim, o projeto literário de Flaubert concede a todo leitor o prazer de compartilhar de singulares paisagens, aquelas que o impacto da leitura possibilita redesenhar.

Permitir ao leitor de hoje experimentar, ampliando-o, o “lazer interior” a que se refere Paul Valéry: eis, em síntese, a sublime sensação a que nos remete a obra de Gustave Flaubert na representação exemplar de Madame Bovary, A educação sentimental, A tentação de Santo Antônio e Três contos. Nessas obras, a composição romanesca e a constelação de temas, mitos e motivos tanto identificam o imaginário e a arte da França quanto estabelecem diálogos com literaturas de outras nacionalidades. Acrescente-se a essas aproximações as relações com campos diversos de conhecimento, como medicina, religião, história, sociologia e psicanálise, a título de amostragem, nos quais o prazer do texto emerge justamente da constante insinuação, ao leitor nacional e ao estrangeiro, sobre o real, enigmático e indecifrável em sua totalidade. Põe-se, pois, em Flaubert, a página e o mundo.

Imagem-síntese da obra flaubertiana, Três contos e, especialmente, a personagem Félicité, de Um coração simples, remete, elucidando-o, ao paradoxo nomeado entre a redução à subjetividade de “Madame Bovary, c’est moi” e a declarada negatividade de “Madame Bovary ou le roman sur le rien”. Articulado pelo projeto de reter o fluxo do tempo e do espaço, nesse conto, o ato de empalhar um papagaio “gigantesco” retém, sob o simbolismo dessa busca da continuidade, a busca da memória inapagável e em contínuo refazer-se, gosto que agrega ao título Um coração simples o próprio desejo de uma subjetividade que vê e que se vê.

Vasto é todo romance que configura a ilusão dessa constante travessia em busca do diferente e do múltiplo. Envolve-nos Flaubert, em seu processo criador, nessa decifração infatigável do novo, com tal intensidade que toda tentativa de compreender as faces do Outro (estrangeiro) retorna ao leitor, reconfigurando-lhe a própria subjetividade. Esta é a paisagem com que a revisitação de Flaubert brinda seu leitor desde sempre.

* Guia de Leitura – 100 autores que você precisa ler é um livro organizado por Léa Masina que faz parte da Coleção L&PM POCKET. A partir de hoje, todo domingo,você conhecerá um desses 100 autores. Pra melhor configurar a proposta de apresentar uma leitura nova de textos clássicos, Léa convidou intelectuais para escreverem uma lauda sobre cada um dos autores.