Em 25 de agosto, o Movimento da Legalidade completa exatos 50 anos. Para os que já ouviram falar, mas não lembram direito desta aula de História, ele foi o movimento de resistência comandado pelo governador gaúcho Leonel Brizola à tentativa de golpe militar que queria evitar que o vice-presidente da República, João Goulart, assumisse no lugar de Jânio Quadros, presidente que havia renunciado. Para marcar este cinquentenário, e para relembrar cada detalhe do episódio de agosto de 1961, o jornalista e escritor Flávio Tavares preparou um livro que será lançado em setembro pela L&PM Editores. Flávio foi, na época, o enviado especial do Jornal Última Hora ao centro de operações do movimento e acabou atuando como um porta-voz informal de Brizola, já que os outros jornais sofreram censura e estavam proibidos de cobrir a Legalidade.
Aqui, você pode ler um artigo de Flávio publicado no Domingo, 21 de agosto, no Jornal Zero Hora e conhecer, com exclusividade, um trecho do primeiro capítulo de seu livro.
A renúncia de Jânio, por Flávio Tavares*
O estranho gesto da renúncia de Jânio Quadros à presidência da República completa 50 anos no dia 25. Nada foi tão rocambolesco nem gerou tantas consequências quanto aquele ofício seco e direto que seu ministro da Justiça levou ao presidente do Congresso naquela tarde de 1961: “Nesta data e por este instrumento, deixando com o ministro da Justiça as razões do meu ato, renuncio ao mandato de presidente da República”. Em apenas 24 palavras, se esvaía como água pelos dedos das mãos o poder de quem governara o país durante sete meses de forma imperial, com o apoio até de antigos adversários.
Com a renúncia, veio o golpe de Estado do ministro da Guerra, vetando a posse do vice-presidente João Goulart – para ele “um comunista”. Logo, o Movimento da Legalidade – a rebelião do governador Leonel Brizola reuniu o III Exército e a população, paralisando o golpe. Mas o grande protagonista foram armas inusitadas – primeiro, a imprensa; logo (e principalmente) o rádio. Brizola foi o grande artífice, mas sem a Cadeia da Legalidade seus discursos não teriam tido o poder de convocação direta, pessoa a pessoa, mobilizando tudo e todos.
Por que Jânio Quadros renunciou? Nas “razões” deixadas com o ministro da Justiça, disse só uma frase de efeito: “Fui vencido pela reação e assim deixo o governo”. Sem dar explicações, esquivou-se sempre a responder ou se enfurecia ao ouvir a pergunta. Em 1980, 19 anos após a renúncia, eu o visitei em São Paulo e, durante três horas, ele falou sem parar de Napoleão e Churchill, verbos e conjunções, José Bonifácio, metais e metaloides, Getúlio e Che Guevara, moeda e câmbio, sem dar pretexto a que eu tocasse na renúncia. Entendi aí que a genialidade extravagante e desordenada do ciclotímico o tinha feito líder político imbatível em 1960.
Com esse estilo, ele conquistou a presidência num triunfo eleitoral avassalador. Nele, tudo era mutante, como se fosse gerado e parido pelo imponderável, mas para o público isso era genialidade. No governo, fez o que quis, com momentos deslumbrantes de estadista e outros mesquinhos, de míope político distrital. A renúncia inesperada, porém, ficou atravancada na História, num desafio sem explicações.
Em tudo, só hipóteses. A mais estapafúrdia era de que ele tentou um “golpe branco” para, após renunciar, ser reconduzido pelo povo com poderes amplos, tipo “ditador constitucional”. Em termos concretos, porém, isto era absurda fantasia: Jânio nunca preparou nenhuma força popular de mobilização nem tentou seduzir os ministros militares, que sempre o apoiaram e também se surpreenderam com o gesto.
O povo-povão deu explicação mais simples: a renúncia foi coisa da cabeça de cachaceiro!
Jânio morreu em fevereiro de 1992, sem explicar-se em público. Agora, ao preparar um livro sobre o Movimento da Legalidade (que a L&PM lança em setembro), deparei com um depoimento do ex-presidente a seu neto (também Jânio), feito em 1991, em que abertamente afirma que renunciou “por crer que os militares, os governadores e o povo exigiriam que continuasse no poder”.
Numa confissão de avô, nada ocultando, conta que mandou o vice-presidente João Goulart à China, “lá longe” para “não haver quem assumisse o poder, pois Jango era inaceitável para a elite”. E conclui: “Achei que voltaria a Brasília na glória. Deu tudo errado”.
Seria ele um ator louco que representava para si mesmo? Ou, traído pela mitomania, acreditou que o sonho de poder viraria realidade numa mágica? Em qualquer caso, faltou a Jânio o que sobrou a Brizola: audácia e capacidade de mobilizar o povo.
* Este texto de Flávio Tavares foi originalmente publicado na página 15 do Jornal Zero Hora do dia 21 de agosto de 2011.
Clique sobre as páginas para ler um trecho do primeiro capítulo do livro de Flávio Tavares a ser publicado em breve: