Livro que marcou toda uma geração em 1770, é considerado o precursor do estilo epistolar na literatura e do movimento romântico na Europa
Por Mellissa R. Pitta (publicado originalmente no jornal Cândido da Biblioteca Pública do Paraná)
A relação de forças entre vida e arte certamente é tão antiga quanto as primeiras manifestações artísticas. Uma grande obra é capaz de criar o imaginário coletivo de uma sociedade ou é apenas a representação de fatos imateriais do cotidiano? A medição é, nesse caso, complicada, mas certamente trata-se de uma via de mão dupla. O artista recebe influência de seu meio, mas também o influencia.
O romance epistolar Os sofrimentos do jovem Werther, nesse sentido, é um marco. Lançado em 1774, o romance escritor por Johann Wolfgang Von Goethe causou grande furor ao trabalhar em uma linha tênue entre ficção e autobiografia. O livro reúne cartas do protagonista Werther para o amigo Wilhelm, que retratam uma sensibilidade romântica e o sofrimento da alma diante de sua paixão obsessiva e impossível por Charlotte, ou Lotte, mulher culta da alta sociedade alemã, pronta para se casar com Albert. O protagonista, sem livrar-se da paixão arrebatadora pela moça, dá cabo da própria vida com um tiro acima do olho direito.
O livro, dividido em duas partes,inicia com um narrador onisciente e onipresente, o editor fictício que reúne as cartas do jovem Werther enviadas à Wilhelm, e aparece somente no início e no fim do livro. Apesar das presenças do editor e do amigo, as cartas redigidas resumem-se a um grande monólogo de Werther, nas quais narra todo o desenrolar de sua paixão impossível e todo o sofrimento vivido até chegar ao seu grande ápice: o suicídio.
Percebe-se, na construção da obra, que o autor tratou de atrelar o destino de seu personagem principal à força do ambiente, qual vive sua paixão no mesmo ritmo (e densidade) das estações do ano. Ao conhecer e se apaixonar por Lotte, passava-se pela primavera, a beleza das flores, das paisagens; no verão, época em que a natureza já não possuía todo seu frescor primaveril, entra o personagem de Albert, noivo de sua dama; o casamento entre Charlotte e Albert acontece no outono, época em que as folhas secam e caem; por fim, no inverno, a alusão ao possível suicídio perpetua, servindo de base a época de tempestades e degelo, onde as paisagens já estão destruídas por completo.
Segundo o diretor do departamento de letras da PUC-Rio Karl Erik Schollhammer, “Goethe criou uma figura poética cuja relação emocional com a natureza foi emblemática, com uma compreensão das possibilidades do sentir subjetivo. O artista era visto como aquele sujeito particularmente receptivo desse impacto e cuja paixão se expressava igualmente no amor e na criação.”
Na época de sua publicação, a comoção foi tão grande que os jovens se reuniam em grupos para fazer a leitura dramática da obra e discutir sua força poética. Alguns desses jovens, que se identificaram fortemente com as características e o romantismo exacerbado de Werther, chegaram a aderir à vestimenta do protagonista: casaca azul, colete e calções amarelos. A indumentária tornou-se referência e identificação de uma alma inquieta romântica, como o personagem que dá nome ao livro.
Porém, a vestimenta não foi a única influência que o livro teve na sociedade. Em diversas regiões, a obra, que daria a Goethe reconhecimento literário em âmbito mundial, chegou a ser censurada por conta da onda de suicídios que gerou entre jovens leitores. Esse fato gerou a expressão Wertherfieber, ou Efeito Werther, utilizado na literatura técnica para designar os suicídios que seguem um modelo, isto é, são imitativos. No caso claro de Werther, os jovens de sua época que viveram uma paixão arrebatadora com a qual não sabiam lidar, que vivenciavam conflitos existenciais, preferiram ter o mesmo fim do protagonista, seguindo seus passos de fuga e escapismo.
De acordo com a professora da UFRJ, especialista em literatura alemã, Magali Moura, Werther foi uma verdadeira febre. Em um artigo publicado na Revista Cult, Moura conta que a presença sombria do protagonista era notada nas pessoas encontradas mortas abraçadas com exemplares do livro.
PRODUÇÃO
Conta, por exemplo, que na primavera de 1772, conheceu em um baile Charlotte Buff, moça da elite alemã já comprometida com Christian Kestner. A paixão arrebatadora pela moça foi instantânea, mas não correspondida. Goethe, enclausurado pelo amor à jovem, muda-se abruptamente para Frankfurt, período em que se torna amigo do casal, trocando correspondências diárias. Em uma delas, é informado que o amigo, também jurista, sensível e dotado de talento artístico, Karl Wilhelm Jerusalém, pôs fim à própria vida, tomando emprestado um par de pistolas de Kestner. O motivo: também estava perdidamente apaixonado por uma mulher casada.
A aproximação da história de Goethe e Jerusalém com Werther é assombrosa, tanto que o autor toma emprestado o nome do amigo para ser o correspondente do protagonista, o destinatário dos lamentos e dramas vividos ao longo da narrativa. A dama dos olhos de Goethe também não foi perdoada. No livro, a paixão de Werther tem o mesmo nome da mulher por quem o autor foi apaixonado.
CLÁSSICO
O romance foi um divisor de águas na literatura germânica e também mundial. Críticos e estudiosos da obra afirmam que a literatura na Alemanha setecentista ainda não contava com nenhum romance marcante antes do surgimento de Werther, livro que deu início à prosa moderna e antecipou a entrada da Europa no romance burguês. Vários elementos que viriam a fazer deslanchar o sucesso do movimento romântico na Europa, um século depois, podem ser encontrados na obra-prima de Goethe, tais como a figura idealizada da mulher culta e erudita, o indivíduo sendo limitado pela sociedade, a mistura de gênerosliterários e a exaltação da natureza.
As características de Werther possibilitaram o nascimento de uma nova literatura, cuja principal característica é a estreita ligação entre autor e obra. “De certa maneira, inventou-se na obra a figura do poeta, característica do romantismo e da compreensão moderna de alguém que vive a literatura e sofre seu impacto, às vezes arriscando a própria vida”, comenta Schollhammer.
A obra foi, sem dúvida, um dos maiores acontecimentos literários do século XVIII, sendo considerada o primeiro best-seller da literatura europeia, e traduzida e publicada em diversos países. Devido a sua influência, Napoleão Bonaparte chegou a confessar a Goethe, em 1808, que havia lido o livro sete vezes.