Um golpe no golpe
Por Zuenir Ventura*
Sempre que surgem descontentamentos nos meios militares, mesmo sem consequências graves como agora, espera-se, é bom olhar para três momentos dramáticos de nossa história política recente: suicídio de Vargas em 1954; renúncia de Jânio em 1961; queda de Jango em 1964. A segunda dessas crises está sendo contada no livro “1961 — o golpe derrotado“, em que Flávio Tavares relata o que chama de “Os treze dias que mudaram o Brasil”, quando um movimento liderado por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande Sul, resistiu à pressão dos ministros militares que tentavam impedir a posse do vice-presidente João Goulart. Com estilo literário e rigor jornalístico, num ritmo de thriller policial, o livro é o relato de quem viu tudo como repórter e viveu como protagonista, já que o autor, armado de um 38, tinha como missão “grudar-se em Brizola”, para cobrir os acontecimentos e para o que desse e viesse. O resultado é uma mistura de gestos heroicos, lances patéticos e números engraçados, como o do trote telefônico que Flávio passou no general José Machado e em Dom Vicente Scherer. Exímio imitador do sotaque alemão, ele ligou para o comandante do III Exército como se fosse o arcebispo, e para este como se fosse o general, um propondo ao outro resistir ao golpe. Sem esse acordo, é possível que o desfecho da crise fosse diferente, assim como o adiamento do Gre-Nal ajudou a manter a unidade dos resistentes, divididos entre gremistas e colorados. O jogo punha em risco a coesão de que tanto precisavam naquele domingo.
Enquanto isso, em Paris, eu servia de intérprete de um Jango indeciso, sem saber se voltava para resistir ou se aguardava por lá. Foi quando um colega parisiense me entregou em uma nota: “O contato de Goulart com a imprensa é um empregado de Carlos Lacerda, seu maior inimigo.” Eu era correspondente da Tribuna da Imprensa. Não podia errar na tradução.
Quando, em vez dos tanques, apareceu no prédio o general Machado para conversar com o governador rebelado, houve apreensão. “Foi o momento mais difícil de minha vida”, confessaria Brizola a Flávio em 1979, em Lisboa. “Eu esperava tudo e qualquer coisa; que ele viesse me abraçar ou me prender”. Machado fora anunciar que o III Exército tinha decidido dar posse ao vice-presidente.
Em meio a tantas peripécias que não cabem neste espaço, chama a atenção o papel do rádio no movimento. Toda a mobilização e todas as proclamações foram feitas através da Cadeia da Legalidade, transmitida do porão do Palácio. “O radinho de pilha começava a popularizar-se, fazendo a palavra de Brizola chegar ao inalcançável”, conta o autor, e não há como não lembrar o fenômeno das redes sociais nas várias “Primaveras” no mundo de hoje. A imagem de alguém com o transistor colado ao ouvido era tão comum quanto a do celular agora.
* Zuenir Ventura é escritor e jornalista. Este texto foi publicado originalmente no Jornal O Globo em 21 de março de 2012.
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Noite de autógrafos e de muitos encontros
A noite do lançamento de 1961 – O golpe derrotado, foi um grande sucesso. Cerca de trezentas pessoas estiveram por lá para receber seu autógrafo de Flávio Tavares, jornalista que testemunhou e participou do Movimento da Legalidade junto a Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do Sul. O livro, que conta todas as peripécias da rebelião, é um relato que resgata um importante momento histórico, ao mesmo tempo em queleva o leitor a mergulhar em uma emocionante aventura. A sessão de autógrafos foi precedida por um bate-papo com Flávio e o também jornalista e escritor David Coimbra. O ex-governador do Rio Grande do Sul Olívio Dutra, o prefeito de Porto Alegre José Fortunati, além da neta de Brizola, Juliana Brizola, e o neto de Jango, Christopher Goulart, também foram prestigiar o lançamento.
Dia 20 de março tem mais: Flávio autografará seu livro na Livraria Argumento no Rio de Janeiro.
Obrigado Doutor Scliar!
Por Ivan Pinheiro Machado
Era o ano de 1977, a L&PM Editores, literalmente, engatinhava. Estávamos na Livraria Lima, na rua Borges de Medeiros em Porto Alegre, quando entrou o jovem escritor e médico Moacyr Scliar. Ele já havia escrito o livro de contos “O carnaval dos animais” e tivera uma excelente repercussão de público e crítica com dois romances, “A guerra no Bom Fim” e “O exército de um homem só”. Começamos a conversar, ele cumprimentou-nos pela ousadia de fazer uma editora naquela época tão difícil, econômica e politicamente. Foi um papo simpático, o Lima e eu ficamos muito tocados pela atenção. Tínhamos 24 e 23 anos, respectivamente, e uma editora com 25 livros publicados e dois anos e meio de vida. Poucos dias depois, o telefone tocou na “sede” da L&PM, na rua 24 de Outubro, numa velha casa que dividíamos com o arquiteto Roque Fiori (tínhamos duas salas).
– Vou direto ao ponto. Disse Scliar. – Vocês querem publicar um livro meu?
Ficamos eufóricos. Recém havíamos publicado “É tarde para saber” de Josué Guimarães, e “Devora-me ou te decifro” de Millôr Fernandes. A editora ia bem e publicar Scliar seria um passo muito importante. Foi assim que editamos “Mês de Cães Danados”, um romance que se passa na época da célebre Campanha da Legalidade, quando Leonel Brizola evitou o golpe militar que teria sucesso três anos mais tarde em 1964. Neste mesmo ano de 1977, fizemos “Pega pra Kaputt”, o primeiro (e único) romance coletivo brasileiro que misturava texto e quadrinhos, com Josué Guimarães, Moacyr Scliar, Luis Fernando Veríssimo e Edgar Vasques na HQ e emplacamos o livro mais vendido da Feira do Livro de Porto Alegre com “Mês de Cães Danados”. Logo no ano seguinte, publicamos “Os Deuses de Raquel”, “”Doutor Miragem”. Em 1979, editamos “Os voluntários”. Em 1980, reeditamos o maravilhoso “O exército de um homem só” e “A guerra no Bom Fim”. Em 1983, relançamos o premiadíssimo “O centauro no jardim”, lançado pela Editora de Sérgio Lacerda, a Nova Fronteira, em 1980.
Enfim, de lá para cá, foram 34 anos de convívio e 24 livros lançados.
Ontem, recebemos a notícia que temíamos desde que, no final de janeiro, Scliar hospitalizara-se acometido de um Acidente Vascular Cerebral. O Doutor, como o chamávamos, tinha lutado, mas não conseguiu resistir à gravidade da doença. Em dezembro, Paulo Lima e eu encontramos Scliar no vôo que ia para o Rio. Nós íamos para uma reunião e ele para uma sessão na Academia. No final da tarde, nos encontramos novamente no Santos Dumont, para pegar o vôo de volta. Na ocasião, conversamos bastante e ele falou de seus planos para o futuro, que eram muitos. Estava trabalhando em vários projetos, tinha “uns três ou quatro” romances na cabeça e estava se dedicando a dois. Gentil como sempre, se disse fascinado com a distribuição dos pockets da L&PM: “Semana passada eu estava no interior do interior de Minas para uma palestra e estava lá o display dos pockets, e tinha livros meus!”
Numa carreira que teve seus primeiros passos com o livro “Histórias de um médico em formação” (uma obra de juventude, escrita em 1962, que ele não gostava muito de incluir na sua bibliografia) e “Carnaval dos Animais”, de 1972, foram mais de 70 títulos entre ensaios, contos e romances. A qualidade, inventividade e originalidade da sua obra o levaram ao reconhecimento nacional, internacional (foi traduzido em várias línguas) e à Academia Brasileira de Letras.
Nascido e criado no Bom Fim, o bairro judeu de Porto Alegre, ele soube como ninguém expressar os mistérios ocultos da suas ruas, as múltiplas vozes de emigrantes, refugiados, o humor ácido cultivado numa tradição de sofrimento e fugas. E esta foi sua grande marca. Traduzir esta compatibilidade de uma cultura universal para os nossos trópicos. Sem perder a alma de tradições ancestrais. Scliar, assim, foi universal, razão pela qual seus livros transitam pelo mundo com naturalidade em várias línguas.
Mas recordando a conversa leve e divertida no aeroporto Santos Dumont, um mês e meio atrás, não posso deixar de pensar na velha e batida precariedade das nossas vidas. Scliar estava bem, lépido em seus 73 anos, rápido como sempre, apressado e cheio de planos. Scliar tinha uma urgência em viver. E ele vivia muito através de suas histórias. Escrevia sempre, sempre.
A multidão dos seus leitores terá como consolo uma obra vasta, de enorme qualidade. Mas aqueles que ficam privados dele terão muita saudade. Scliar era amigo e solidário. Não cultivava nem uma grama de inveja, tão comum entre nós; estimulava os jovens escritores como muito poucos, tinha sempre uma palavra de carinho para todos e usava seu espaço na imprensa para divulgar tudo o que ele achava que tinha qualidade ou era promissor. Aqui na L&PM temos o exemplo clássico da generosidade do Doutor. No final dos anos 90, atravessamos uma crise séria, quase fechamos as portas. Scliar, preocupado, acompanhou a “crise” desde os piores momentos, até o final feliz. E nos ajudou muito mais do que ele imaginava. Pois o voto de confiança que depositou em nós, os livros novos que editamos naquele momento incerto, a sua adesão irrestrita à coleção de bolso, lá em 1997, quando todos – autores, imprensa e livreiros – duvidavam que pudesse dar certo, foi fundamental para chegarmos até aqui. Hoje, a L&PM tem a maior coleção de bolso do país e um lugar de destaque entre as grandes editoras brasileiras. O Doutor Scliar faz parte disso e nós seremos gratos para sempre.