Foi na sexta-feira passada, 21 de junho, às 2h, que Marcello Grassmann partiu. Ilustrador, gravurista, artista múltiplo, tinha 87 anos ao falecer. Mas continuava lúcido, indignado e crítico à frivolidade na arte conforme atestou Jacob Klintowitz, seu amigo próximo e curador da última exposição de Grassmann no Espaço Cultural Citi em São Paulo. “Era um símbolo. Agora espero que o simbolismo se renove e que sua morte seja o ponto de partida para uma reflexão sobre o brilho seminal de sua obra” afirmou Jacob Klintowitz neste final de semana.
Leia abaixo, o último texto escrito por Klintowitz sobre a obra de Marcello Grassmann:
Marcello Grassmann: matéria dos sonhos
Por Jacob Klintowitz
Talvez nada seja mais belo, poético, revelador, profético e inspirador do que a “Tempestade”, de 1612, a última peça de Shakespeare (1564-1616). E, é provável, que este texto outonal seja o testamento do poeta, a derradeira mensagem, a sua síntese sobre a humanidade e a saga dos homens. Nele, Próspero, a sublime criatura sonhada por William Shakespeare, define a natureza do homem e da vida: “Somos feitos da matéria dos sonhos”.
Ao contemplar as formas criadas por Marcello Grassmann, a extraordinária qualidade do seu desenho, o aprofundamento do tema de maneira tão elevada e com tanta propriedade, resta em nós a convicção de que entramos num universo antes desconhecido e agora revelado pela lucidez do artista. Este mundo que ele nos descobre e do qual sentimos que dele habitava em nós certo reconhecimento, agora recuperado, esta enevoada e submersa realidade: a estranheza deste lugar de cavalheiros e armaduras, animais míticos, donzelas intangíveis e belas, e no qual o destino paira sobre todos. É o mundo feito da mesma matéria de que se fabricam os sonhos.
Marcello Grassmann elabora com a matéria sutil e a sua revelação é a de uma estrutura metafísica e ideal, densa e soberana, mas, e aqui uma das marcas do artista, construída na atmosfera da energia delicada e inapreensível, aquela feita de mitos e fábulas, que somente se acende quando a consciência adormece.
Este universo manifesto é fatal e impassível, e só nos contempla como personagens.
Muitos poderão acreditar que se trata do resultado de uma vida inteira de trabalho e do aprimoramento de um artista que, afinal de contas, é hoje, aos 86 anos, um dos nossos decanos, patriarca e santo protetor da arte brasileira. E também teria razão. Ou certa razão, o que é menos do que a razão. Pois Marcello Grassmann desde o seu início sempre se destacou devido a sua originalidade e extrema consciência de sua individualidade. Entretanto, o artista, com o tempo a favor para elaborar a própria identidade artística, afirmou de maneira esplêndida a singularidade de sua iconografia. Marcello Grassmann, um dos artistas destacados dos séculos XX e XXI, é referência seminal da arte brasileira.