Um curioso duelo intrigou o mundo literário esta semana. De um lado, o escritor Charles Shields, que acaba de lançar um livro de 528 páginas sobre a vida de Kurt Vonnegut, o autor de Café da manhã dos campeões e Matadouro 5. De outro, Mark Vonnegut, filho de Kurt, que acusa Shields de ter feito um retrato equivocado se seu pai no livro And so it goes.
Segundo o biógrafo, Kurt Vonnegut era um velho amargo e solitário, que estava sempre irritado e tinha tendências depressivas, além de tratar mal suas esposas. O levantamento realizado por Shields sugere ainda que o autor do libelo pacifista Matadouro 5 era proprietário de parte das ações da empresa Dow Chemical, fabricante do napalm, usado em bombas incendiárias e lança-chamas no início da Segunda Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã.
Além de contraditória (se compararmos com a mensagem que Kurt Vonnegut nos deixou por meio de sua obra), a biografia tropeça em outro problema: segundo Mark, o biógrafo conviveu pouquíssimo tempo com seu pai e as informações que ele apurou sobre a infância e a família do escritor também não são bem assim. Shields conta que Kurt Vonnegut foi uma criança triste, com problemas afetivos, e que seu pai era distante. Mark desmente.
Ele admite que Kurt Vonnegut “não era um homem ou um pai perfeito e teve dois casamentos fracassados”, mas o retrato que Shields pintou com estas “tintas” não mostra a realidade.
O livro Matadouro 5, de Kurt Vonnegut, foi banido do currículo da Republic High School, no estado americano do Missouri, “por conter uma linguagem tão profana, que faria um marinheiro corar de vergonha”. A obra-prima do escritor norte-americano foi publicada em 1969, em plena Guerra do Vietnã, e conta de forma irônica e até engraçada a história de um soldado que lutou na Segunda Guerra Mundial e testemunhou o bombardeio da cidade alemã de Dresden. O tom do livro é de sátira e isso não agradou a diretoria da Republic.
Eles não esperavam, no entanto, a reação da “Kurt Vonnegut Memorial Library“, que saiu em defesa da memória do escritor e, como resposta à proibição, disponibilizou gratuitamente 150 cópias deMatadouro 5 para os alunos da Republic. Basta mandar um e-mail solicitando a obra e a biblioteca providencia o envio. “Não queremos obrigar as pessoas a gostar do livro, mas sim garantir que qualquer um possa lê-lo e decidir isso por si mesmo”, escreveu a diretora da biblioteca, Julia Whitehead, em nota no site da instituição.
Além do livro de Kurt Vonnegut, a Republic High School baniu do currículo o romance “Twenty Boy Summer”, de Sarah Ockler, por conter cenas de sexo.
A pergunta que não quer calar é: em que mundo e em que tempo vivem os diretores da Republic High School ao acharem que a proibição de determinados livros vai impedir que suas crianças tenham contato com histórias e informações sobre assuntos como guerra e sexo?
“Matadouro 5” de Kurt Vonnegut é um clássico. Antes de ser um livro “pacifista”, ele é um livro engraçado e sobretudo dolorido, muito longe da glamourização da guerra feita por Hollywood. O centro de tudo é a desastrada participação de Billy Pilgrin na guerra. Foi para o combate, acabou preso pelos alemães e foi testemunha – desde o porão numero 5 de um matadouro – do pior bombardeio da Segunda Guerra; a destruição da bela cidade de Dresden pela força aérea norte-americana. Foi lá que os aliados resolveram fazer uma “operação exemplar” contra os alemães. O resultado foi a morte de 135 mil pessoas, a esmagadora maioria mulheres, velhos e crianças. Havia poucos soldados em Dresden, pois era tida como “cidade aberta”, nome que se dava às cidades que, pelos seus tesouros arquitetônicos, os dois lados concordavam em não bombardear. Mas mesmo assim ela ficou igual à superfície da lua. Afinal, a guerra não tem regulamento, não tem dó nem piedade. Em “Matadouro 5” o gênio de Vonnegut faz com que a história fuja sempre do melodrama. Ele é irônico, tragicômico, satírico e delirante. Seu personagem voa pelo tempo, circula pela guerra, pelo american way of life e pelo planeta de Tralfamador que fica a 717.960.000.000.000.000 km da Terra. A maestria narrativa de Vonnegut põe o leitor em alerta máximo permanente. A morte circunda a história até quase perder a importância. O livro é inundado pela doentia solidão de Billy Pilgrin, o homem que estava em Dresden. Coisas da vida, como ele costuma dizer no livro, sempre que fala da morte.
Quando se chega ao fim, temos a noção muito clara do que é a grande literatura. Sob o clima satírico, quase humorístico, tudo é amargo. E Vonnegut chega à dolorosa conclusão de que o ser humano é inviável e não há heróis quando se matam pessoas. Não importa o lado em que elas estejam. (Ivan Pinheiro Machado)
Em 1972, “Matadouro 5” – cujo título original é Slaughterhouse-Five – foi adaptado para o cinema com direção de George Roy Hill (o mesmo de “Butch Cassidy an the Sundance Kid”) e ganhou três Globos de Ouro na época. Veja o trailer:
Um memorial em Indianapolis, terra natal de Kurt Vonnegut, deve ser inaugurado três anos após sua morte. Metade do espaço será ocupado por uma biblioteca e a outra metade por um museu. Do museu farão parte as primeiras edições dos livros do autor, uma réplica do seu estúdio e algumas cartas de rejeição que recebeu antes de fazer sucesso. A inauguração está prevista ainda para a próxima primavera (outono no hemisfério norte).
Livros e objetos que farão parte do memorial / Foto: Michael Conroy, AP