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Bocage, o sátiro romântico

Manuel Maria l’Hedoux Barbosa du Bocage nasceu em 15 de setembro de 1765. Foi romântico antes do romantismo, escrevia poemas eróticos, satíricos, nostálgicos, altamente confessionais, cheios de angústia, referências ao amor e à morte, fazendo pouco do Estado e da religião. Foi uma espécie de pré-Rimbaud: assim como este foi para a África, lançou-se numa expedição ao Oriente, sempre à procura de um bálsamo para sua inquietação emocional. De volta à Portugal, acabou preso por causa de seus versos e morreu com apenas 40 anos.

Retrato Próprio

Magro, de olhos azuis, carão moreno,
Bem servido de pés, meão na altura,
Triste de facha, o mesmo de figura,
Nariz alto no meio, e não pequeno.

Incapaz de assistir num só terreno,
Mais propenso ao furor do que à ternura,
Bebendo em níveas mãos por taça escura
De zelos infernais letal veneno.

Devoto incensador de mil deidades,
(Digo, de moças mil) num só momento
E somente no altar amando os frades:

Eis Bocage, em quem luz algum talento.
Saíram dele mesmo estas verdades
Num dia, em que se achou mais pachorrento.

(Poema do livro O delírio amoroso & outros poemas, de Bocage, Coleção L&PM Pocket)

 

Invocação à noite

Oh deusa, que proteges dos amantes
O destro furto, o crime deleitoso,
Abafa com teu manto pavoroso
Os importunos astros vigilantes:

Quero adoçar meus lábios anelantes
No seio de Ritália melindroso;
Estorva que os maus olhos do invejoso
Turbem de amor os sôfregos instantes:

Tétis formosa, tal encanto inspire
Ao namorado sol teu níveo rosto,
Que nunca de teus braços se retire!

Tarde ao menos o carro à Noite oposto,
Até que eu desfaleça, até que expire
Nas ternas ânsias, no inefável gosto.

Bocage, O delírio amoroso & outros poemas

As viagens amorosas de Bocage

Manuel Maria Barbosa du Bocage gostava de uma boa sacanagem. Mas não gostava só disto. Como bem coloca a doutora em literatura Jane Tutikian no prefácio de O delírio amoroso e outros poemas, “Se é possível falar em um homem entre fronteiras, esse homem é Bocage: o das anedotas sujas e criações obscenas ao lado de poemas sensíveis, plenos de confissões amorosas, amargura e sofrimento, e mais: um homem situado entre dois mundos, entre as regras rígidas de um Arcadismo decadente, refletindo um mundo racional, ordenado e concreto, e a liberdade de um Romantismo descendente, quando a literatura se abre à individualidade e à renovação. Bocage é um homem do seu tempo e à frente do seu tempo.”

Pois durante o tempo em que viveu, Bocage mostrou ser apaixonado pela vida, pelas palavras e, claro, pelas mulheres. E foi justamente porque uma delas partiu-lhe o coração que ele deixou sua Portugal natal para aventurar-se por mares distantes. Em 1786, Bocage embarcou rumo à Índia no navio “Nossa Senhora da Vida, Santo Antônio e Madalena” e levou no coração sua namorada Gertrudes, a Gertrúria de Arcádia, responsável por dar um toque a mais de amor e amargura a seus poemas – já que ela acabou trocando o poeta por seu irmão Gil. No caminho para a Índia, entretanto, uma tormenta obrigou a nau em que ele viajava a fazer uma escala no Rio de Janeiro. Lá, Bocage foi recebido pelo governador Luís de Vasconcelos e ficou alguns dias aproveitando as terras tropicais até partir novamente para Goa, onde acabaria vivendo por 28 meses. Se o Rio de Janeiro inspirou Bocage a criar algumas de suas piadas picantes e versos libidinosos, não sabemos. Mas é difícil pensar que a cidade carioca não o tenha  encantado. 

Abaixo, um dos poemas dedicados à Gertrúria, que está em O delírio amoroso e outros poemas, livro que acaba de ser reeditado na Coleção L&PM POCKET com nova capa, feita a partir de uma foto de Ivan Pinheiro Machado de “Psyché ranimée par le baiser de l´Amor”, escultura de Antonio Canova que está exposta no museu do Louvre em Paris.

RECORDANDO-SE DA INCONSTÂNCIA DE GERTÚRIA

Da pérfida Gertúria o juramento
Parece-me que estou inda escutando.
E que inda ao som da voz suave e brando
Encolhe as asas, de encantado, o vento:

No vasto, infatigável pensamento
Os mimos da perjura estou notando…
Eis Amor, eis as Graças festejando
Dos ternos votos o feliz momento.

Mas ah!… Da minha rápida alegria
Para que acendes mais as vivas cores,
Lisonjeiro pincel da fantasia?

Basta, cega paixão, loucos amores;
Esqueçam-se os prazeres de algum dia,
Tão belos, tão duráveis como as flores.