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Maria Bethânia, Fernando Pessoa e a delicadeza

Por Nanni Rios*

Quem assistiu ao show Bethânia e as palavras, que fez turnê pelo Brasil em 2011, pode confirmar esta minha impressão: ficou difícil pensar em Maria Bethânia sem se lembrar de Fernando Pessoa. Ela recita os versos do poeta português como ninguém – talvez nem o próprio, que era tímido e não tinha a eloquência como dom – e com uma naturalidade impressionante, como só quem tem uma intimidade quase carnal com cada um daqueles versos conseguiria fazer. E é assim que ela faz. Cantou, encantou e se fez inesquecível. Me emocionei, aplaudi de pé e corri para a porta do camarim e de lá não saí até vencer o segurança – muito simpático, diga-se de passagem – pelo cansaço. Tiete assumida, consegui um abraço de Maria Bethânia, que me recebeu com um sorriso largo no rosto, ainda cheia de poesia e delicadeza.

“Bethânia e as palavras” em Porto Alegre (2011)

É por isso que hoje, no dia de seu aniversário, quero falar de Fernando Pessoa. O Poema do Menino Jesus reúne, na minha opinião, alguns dos mais belos versos escritos sob o pseudônimo de Alberto Caeiro e fica ainda mais bonito na voz dela. Vê-la ao vivo recitando este poema foi pura catarse e, desde então, não há mais como separá-los.

Ouça o trecho do show em que ela declama o poema:

Num meio-dia de fim de Primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
(…)
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o Sol
E desceu no primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas.
Aponta-me todas as coisas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
(…)
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios
(…)
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar.
(…)
*Nanni Rios é editora de mídias sociais da L&PM Editores, fã de Maria Bethânia e leitora de Fernando Pessoa.