Nascido em 6 de maio de 1856, Sigmund Freud permanece vivo no consciente – e no inconsciente – do mundo. Hoje, 160 anos após seus olhos se abrirem pela primeira vez, são muitas as homenagens prestadas ao pai da psicanálise. O Google, por exemplo, criou um belo Doodle na página principal do site. No desenho, o rosto de Freud, de perfil, simboliza a ponta de um iceberg, enquanto o restante de sua cabeça, representando o inconsciente, permanece submersa, fazendo referência à sua obra mais conhecida, A interpretação dos Sonhos (que a L&PM publica em diversos formatos). O criador do Doodle, Kevin Laughlin, explica no blog do Google que dispensou outros símbolos que lembram Freud, como o divã ou sua tradicional poltrona de couro, para desenhar o iceberg: “O iceberg é uma referência às profundezas obscuras da mente inconsciente.”
Arquivo da tag: Sigmund Freud
A “dominatrix” Lou Andreas-Salomé
Friedrich Nietzche e Paul Rée, ambos alemães, ambos filósofos, ambos apaixonados pela mesma mulher: a jovem russa Lou von Salomé. Em 1882, os dois amigos – primeiro Rée e depois Nietzsche – pediram a mão de Lou em casamento. Ela, que na época tinha apenas 20 anos, não aceitou nenhum deles. Após recusá-los, Nietzsche sugeriu que os três fizessem uma foto juntos. A história desta fotografia, até hoje polêmica, está contada em “Lou Andreas-Salomé”, de Dorian Astor (Série Biografias L&PM).
O pedido solene acontecerá em 13 de maio, em Lucerna: um encontro é marcado no parque Löwengarten, ao pé da estátua do leão. Rée aguarda no hotel, ansioso, Nietzsche faz sua declaração, Lou reitera sua recusa, relembra sua aversão pelo casamento, insiste numa comunidade intelectual e amigável, à qual o nome de Rée não deixa de ser associado. Eles vão ao encontro de Rée no hotel. Nietzsche, para salvar as aparências, propõe que eles celebrem a Trindade com uma fotografia que seria encomendada a seu amigo Jules Bonnet. Rée detesta sua própria imagem e é reticente; mesmo assim, os três amigos acertam a representação de sua amizade, sob a direção de Nietzsche. Esse famoso retrato não deixa de causar desconforto. O trio se organiza ao redor de uma pequena charrete, diante de um cenário representando a montanha de Jungfrau (a Virgem).
Rée, no centro e em primeiro plano, olha para a câmara com um sorriso embaraçado, suas mãos procuram uma posição, a direita colocada dentro do colete, a esquerda roçando a atrelagem. Atrás dele, Nietzsche segura a atrelagem com mais convicção, com o olhar voltado para longe, em direção a um ponto obscuro. Lou está desconfortavelmente sentada dentro da charrete, fixando a câmera com um semirrorriso satisfeito: ela segura na mão direita um chicote ornamentado com lilases, pronta para fustigar os dois homens como dois bons cavalos de tração. Sua mão esquerda segura como rédeas as extremidades de uma corda enlaçada ao redor dos braços de Rée e Nietzsche. Comenta-se que o próprio Bonnet se chocara com a incidência da pose. Mas os três nada quiseram ouvir.
Muito se comentou essa fotografia, que alimentou, em relação a Lou von Salomé, a imagem da mulher fatal e cruel, aos pés de quem os homens – mesmo um gênio da dimensão de Nietzsche – se humilhavam, como que estupidificados. Se for para interpretar essa posição como uma encenação masoquista (dois homens amarrados e submissos, e uma dominadora armada com um chicote), também será preciso especificar que a relação masoquista repousa num contrato livremente aceito, no qual o mestre do jogo não é aquele que pensamos. (…) Depois de analisar por tempo suficiente essa fotografia, vemos que o mais tragicamente sério é Paul Rée, aquele que não queria ser fotografado, aquele que não gostava de si mesmo, aquele que Nietzsche descreveria dois meses depois, num rascunho de carta para Malwida, da seguinte maneira: “A ideia de perpetuar a humanidade lhe é insuportável: ele não consegue vencer seu sentimento de aumentar o número de infelizes.” Rée desejaria de fato aquele casamento? Tudo acontece como se cada um dos três personagens da fotografia, reunidos para “celebrar a impossibilidade de um simples casamento”, fizesse com os outros dois um contrato de natureza completamente diferente: retardar a realização, adiar o desenlace, ser pura tensão, pura direção. Sujeitos a rebentar como uma corda tensionada demais. As duas bestas de carga se esgotarão. A condutora se sairá melhor.
Em 1887, Lou se casaria com Friedrich Carl Andreas. Em 1897, se tornaria amante do escritor Rainer Maria Rilke e, mais tarde, seria acolhida por Freud como sua discípula mais brilhante.
Freud tentou prever a sua própria morte
No dia 23 de setembro de 1939, às três da manhã, morria Sigmund Freud. Sua partida deu-se depois que Max Schur, atendendo ao pedido do próprio Freud, injetou uma forte dose de morfina no pai da psicanálise.
Freud havia tentado prever a data exata da sua morte, cercando-a de superstições e receios. “Tenho uma tendência à superstição, cuja origem ainda me é desconhecida” escreveu ele em 1901. Ligou-se à Teoria dos Números Mágicos (desenvolvida por seu amigo, o médico Wilhelm Fliess) e, em 1894, teria previsto que seu falecimento se daria entre os 40 e 50 anos de idade. Aos 51 anos, em correspondência ao colega Ferenczi, mudou de ideia e afirmou que morreria em fevereiro de 1910. Apesar de ter errado todas as previsões, continuou interessado na vida oculta que se escondia atrás de seu id e de seu ego.
Em 1938, quando estava exilado em Londres, recebeu a visita de Salvador Dalí, levado até sua casa por Stefan Zweig. Nesse encontro, Dalí fez um retrato de Freud que, ao olhá-lo, teria dito que ele “preconizava inconscientemente sua morte próxima”. E isso não foi só o que Dalí ouviu durante a visita. “Quando tive a honra de encontrar, pela primeira vez, em Londres, Sigmund Freud, ele explicou-me em poucas palavras que as superstições possuíam um fundamento erótico e eficaz junto às forças ocultas. Desde então, mergulho cada vez mais profundamente na superstição. Carrego comigo um pedaço de madeira que nunca me deixa (…)” declarou Salvador Dalí alguns anos depois.
As origens de Freud
Que lugar Freud ocupava no seio de sua família, que ele por sua vez perpetuará? Seu pai, Kalamon Jacob Freud – neto do rabino Efraim e filho do rabino Schlomo, morto dois meses antes do nascimento de Sigmund -, é o primogênito de uma família de comerciantes judeus, originários da Galícia Oriental. Ele pode ser considerado um homem das Luzes que permaneceu a vida inteira apegado aos valores tradicionais do judaísmo. Negociante de lãs, despreparado para a industrialização, ele não tem muito sucesso nos negócios, e em 1859 a família precisará deixar Freiberg, na Morávia (hoje Pribor, na atual República Tcheca), para instalar-se em Viena, como tantas outras famílias judias vindas da Eslovênia, Romênia, Polônia, Itália ou Hungria. Jacob tem 41 anos quando casa com Amalia Nathanson, vinte anos mais nova. É nesse contexto econômico difícil que Freud nasce, em 6 de maio de 1856, em Freiberg.
(…)
Amalia, que se tornou mãe de Sigmund aos 21 anos, também vinha de uma família judia da Galícia, anexada ao Império Austro-Húngaro. Ela passara a infância em Odessa antes de seus pais também se instalarem em Viena. Era uma jovem bonita, vivaz, inteligente, sempre decidida e que podia se mostrar tirânica, principalmente com as filhas. Quanto a seu filho mais velho, ela o chamava, mesmo em idade avançada, de Mein goldener Sigi (meu Sigi de ouro).
(…)
Não ha dúvida de que o jovem Sigmund tenha sido objeto de particular dileção por parte de sua jovem mãe – o que o dotou de uma profunda confiança em si mesmo diante da adversidade – e por parte de um pai de idade madura que, apesar das condições materiais bantante precárias, não hesitara em aconselhar ao filho que, para questões de orientação profissional, levasse em conta apenas suas próprias inclinações.
(Trechos de Freud, de René Major e Chantal Talagrand – Série Biografias L&PM)
A L&PM publica diversas obras de Freud traduzidas direto do alemão, entre elas, A interpretação dos sonhos. Clique aqui para ver.
Mostra de Dalí chega a São Paulo com obras marcadas pela presença de Freud
Quem olha desatentamente a tela “Paisaje Pagano Medio”, feita por Salvador Dalí em 1937, talvez não perceba a presença de Sigmund Freud. Mas o pai da psicanálise está ali, pintado em forma de busto de pedra, integrado à uma paisagem feita de sombra e sonho. Uma pintura que agora chega à São Paulo depois de passar pelo Rio de Janeiro.
A mostra que acaba de desembarcar na capital paulista é uma das maiores do pintor surrealista já realizada no país – a mesma que levou quase 1 milhão de pessoas ao Centro Cultural Banco do Brasil no RJ. Aberta em 19 de outubro, segue até 11 de janeiro no Instituto Tomie Ohtake.
Freud é presença marcante nessa exposição. Até porque nenhum outro autor ou pensador teve tanto impacto sobre a obra do excêntrico espanhol do que o médico austríaco. Após ler “A interpretação dos sonhos”, traduzida para o a língua hispana nos anos 1920, Dalí encontrou em Freud a base da invenção de seu mundo surreal, centrado no sexo e repleto de imagens significativas como muletas sustentando rostos flácidos (que críticos vêem como uma alusão à impotência sexual do artista). “Dalí era obcecado por sexo” disse Eliane Robert Moraes, especialista em literatura erótica, em matéria da Folha de S. Paulo. “Aquilo que em Freud seria doença é chamado de expressão poética em Dalí”, ela completou.
Mas o fato é que apesar da sua ligação onírica com Freud, o pintor não se interessou pelas teorias da psicanálise propriamente ditas. Quando conseguiu encontrar-se com o sábio Sigmund, ele já estava à beira da morte e quase não trocaram palavras. Foi nesse dia, no entanto, que Dalí fez mais um desenho de seu “ídolo”.
SERVIÇO
O que: Salvador Dalí
Quando: De 19/10/2014 a 11/01/2015
Onde: Instituto Tomie Ohtake, av. Brig. Faria Lima, 201 – Fone (11) 2245-1900
Quanto: Grátis
Curso sobre a obra de Freud em Porto Alegre
A Sociedade Psicanalítica Après Coup promove em Porto Alegre o curso “Iniciação à obra de Sigmund Freud” sobre os textos sociais do escritor. As aulas já começaram, mas ainda há vagas. Os interessados devem escrever para aprescoupportoalegre@gmail.com
Três vezes Freud
Acabou de chegar O homem Moisés e a religião monoteísta, de Freud, com tradução direta do alemão em tamanho 14x21cm. Outras duas obras do pai da psicanálise chegaram há pouco em tamanho convencional: Totem e tabu e Psicologia das massas e análise do eu.
O centenário de “Totem e tabu” de Freud
Para celebrar os 100 anos da publicação de Totem e tabu, e Sigmund Freud, dois eventos vão reunir alguns dos mais renomados profissionais na área da psicanálise para debater e analisar a obra. No dia 11 de novembro a Universidade de Fortaleza (Unifor) promove o encontro “Centenário Totem e Tabu“ no Teatro Celina Queiroz na Unifor a partir das 9h. O evento dá direito a certificado e as inscrições podem ser feitas pelo email centenariototemtabu@gmail.com
No dia 14 de novembro, a partir das 14h, a USP promove o encontro “100 anos de Totem e tabu”, onde a L&PM lança uma nova edição desta importante obra de Freud em formato de bolso na Coleção L&PM Pocket. A seguir, mais informações:
Do pai da psicanálise, a L&PM publica ainda A interpretação dos sonhos, O mal-estar na cultura, O futuro de uma ilusão, Psicologia das massas e análise do eu.
Freud nos palcos
A peça “Freud – A última sessão” estreou em Nova York em 2011 e, no ano seguinte, foi eleita a melhor peça Off-Broadway. Escrita por Mark St. Germain, ela narra o encontro entre Sigmund Freud e C. S. Lewis, autor da trilogia “As crônicas de Nárnia”.
No final de 2012, o texto ganhou uma adaptação brasileira com Ticiana Studart e fez um estrondoso sucesso no Rio de Janeiro.
São apenas dois atores em cena. De um lado, Freud, médico, criador da psicanálise e ateu ferrenho, vivido pelo ator Helio Ribeiro. Do outro Lewis: professor de Oxford, escritor e cristão fervoroso, interpretado por Antonio Fragoso. Na peça, ambos discutem seu ponto de vista sobre Deus, amor, sexo e o significado da vida. Tudo com muito humor.
No dia 19 de outubro, haverá uma apresentação de “Freud – A última sessão” dentro da programação da Festa Internacional de Teatro de Angra dos Reis e, nos dias 28 e 29 de novembro ela será apresentada em Porto Alegre no Teatro Bourbon Country.
E por falar em Freud, dele acabam de chegar Totem e Tabu e Psicologia das nassas e análise do eu em formato 14cm X 21cm.
O sonho de publicar “A interpretação dos sonhos”, de Freud
Cinco anos depois: sobre a experiência de editar a primeira tradução brasileira direta de “A interpretação dos sonhos”
Por Caroline Chang*
Hoje fiz as contas: faz cinco anos que começamos o projeto de publicar a obra de Freud, iniciando com A interpretação dos sonhos, traduzido direto do alemão (coisa que não tinha sido feita, ainda; os leitores brasileiros liam A interpretação ou numa tradução da versão em inglês de James Strachey, ou em espanhol). Vendo retrospectivamente, foi uma aventura e tanto, que relembro aqui.
A ideia era nos prepararmos para a entrada da obra freudiana em domínio público, que ocorreria em 1º de janeiro de 2010. Trata-se de um marco importante: a partir dessa data, qualquer pessoa ou editora que quisesse publicar os textos freudianos, em alemão ou em tradução, poderia fazê-lo, sob o ponto de vista legal de direitos autorais. O que significa que pela primeira vez o pensamento deste grande homem estaria (está) disponível para os leitores em várias traduções e edições, numa pluralidade de opções e leituras que só posso ver como bem-vinda.
O início do projeto envolveu a Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Queríamos um colegiado de estudiosos de Freud que pudesse nos apontar, dentre a imensidão de textos escritos pelo pai da psicanálise, uma lista inicial de obras a serem editadas (sobre a fértil genialidade de Freud, não posso deixar de pensar: sorte nossa que não havia televisão naquela época). Não poderia ficar fora dessa lista A interpretação, primeira obra psicanalítica do autor no sentido de que é nela que ele afirma a existência e explica parte do funcionamento de uma novidade chamada “inconsciente”.
O passo seguinte: encontrar um tradutor para a tarefa hercúlea. Hercúlea não apenas pelo alentado tamanho do texto – em torno de 650 laudas –, mas pela importância (inclusive simbólica) do trabalho; pela dificuldade da terminologia psicanalítica (que na Interpretação ainda não é tratada com rigor pelo próprio Freud); e pelo fato de que esse é um dos textos mais “duros” do autor, estilisticamente falando. Nele Freud ainda se prende um tanto a um estilo acadêmico do qual depois se despojará, como se vê em Totem e tabu, considerado um de seus textos mais elegantes.
A escolha natural recaía sobre Renato Zwick, jovem tradutor, ex-estudante de psicologia que já havia vertido para a L&PM, entre outras, O mal-estar na cultura e O futuro de uma ilusão, duas obras freudianas mais curtas e mais simples.
Como diz a frase usualmente atribuída a Cocteau, “Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez”. O Renato, com sua têmpera germânica, recebeu o convite, ponderou-o e aceitou a missão. Acordamos que a tradução se basearia na Studienausgabe da S. Fischer Verlag. O conceito da edição que queríamos – voltada para o público em geral, não apenas para estudiosos, psicanalistas e especialistas – o Renato já conhecia. Entre ele começar a estudar o trabalho e entregar a última parcela da tradução, foram-se quase dois anos. Recebi o arquivo final em dezembro de 2010.
O ano de 2011 foi todinho de revisões. Primeiro li o texto e sugeri várias modificações para o tradutor. Então o Renato fez as alterações necessárias e me devolveu o arquivo. Encomendei então a revisão técnica da igualmente destemida Tania Rivera, psicanalista e professora da Universidade de Brasília. Imbuída da importância da tarefa, a Tania fez uma leitura à altura. Além de várias observações e sugestões de alterações terminológicas, foi dela a ideia de sinalizar, na nossa edição, os trechos e notas que Freud foi acrescentando à Interpretação à medida que o livro, originalmente de 1899, ia sendo reeditado.
Sem se mixar para o desafio de redigir o texto de apresentação da primeira tradução direta de uma obra dessa envergadura, junto com a revisão técnica a Tania também entregou seu texto, intitulado “O sonho e o século”. Foram-se mais algumas semanas de leituras internas da apresentação e solicitações de alteração para tornar o texto acessível a todo tipo de leitor (inclusive ao leitor que estivesse se deparando com Freud pela primeiríssima vez).
Enquanto isso eu tinha que explicar pro Ivan Pinheiro Machado, publisher da casa e meu chefe, por que um livro que já tinha custado uma pequena fortuna ia atrasar mais uma vez.
Foi então o momento de “mediar” os argumentos da Tania e do Renato em relação a trechos específicos – geralmente o Renato defendia a visão germanista da coisa, levando sobretudo em consideração a língua em que o texto foi escrito, enquanto a Tania tinha uma visão mais psicanalítica. Depois de muitos e-mails, arquivos para lá, arquivos para cá, acho que quem saiu ganhando foi o livro – e o leitor. (Aliás, uma das coisas legais de editar o Freud é justamente o intercâmbio com pessoas preparadíssimas, de alto nível e comprometidas com a causa como a Tania e o Renato.)
Em seguida demoramos mais um bom tempo para inserir as marcações de acréscimos a edições posteriores feitas por Freud. Chegamos à conclusão de que a melhor maneira de sinalizar isso era como fora feito pela Presses Universitaires de France: apresentar um risco vertical ao lado do trecho acrescentado e, ao final do referido trecho, informar entre colchetes o ano do acréscimo.
Como fazer isso no editor de texto? Como transpor essa marcação para o programa de paginação? A solução que encontramos foi sublinhar todos os trechos a serem destacados, para que a Mônica Bohrer, mais tarde trabalhando no InDesign, pudesse inserir os riscos verticais nas margens das páginas e apagar o sublinhado.
Devo dizer que sou uma franca admiradora do dr. Sig. Tenho uma tia que é psicóloga, fiz terapia desde os sete anos e sou adepta da análise. Tenho plena convicção de que devia estar assegurado na Constituição o direito de todo cidadão fazer análise uma vez na vida, pelo menos. Daí o senso de responsabilidade – ou melhor dizendo, o nervosismo que tomou conta de mim durante todo esse processo de edição. Deus me livre fazer feio logo com a obra mais emblemática desse gênio, a quem devo tanto da minha saúde mental. Havia grandes chances de que a nossa edição fosse a primeira tradução direta a ser lançada no Brasil, e eu sabia que, embora estivéssemos pensando no leitor em geral, todos os olhos psicanalíticos – freudianos, lacanianos, junguianos, kleinianos etc. – estariam voltados para nós. A discussão de cada termo me parecia crucial. Toda decisão editorial era tomada com muito cuidado, pesando prós e contras.
Uma vez acrescentada a biografia dos colaboradores, o “Itinerário para uma leitura de Freud”, de autoria dos psicanalistas e professores Edson Sousa e Paulo Endo, bem como os índices ao final do livro, decidimos publicar A interpretação em dois volumes, tal como acontece na Argentina (me refiro à edição da Amorrortu, que, como as outras duas edições estrangeiras já citadas, consultamos muitas e muitas vezes). Definição de onde vai terminar o primeiro volume e começar o segundo; da numeração das páginas; como seriam os sumários, a numeração das notas etc. Finalmente lá estavam os arquivos finais, prontos para a preparação. Que ficou a cargo da Patrícia Yurgel, que já fizera um bom trabalho com textos de Freud.
Foi durante o acompanhamento da preparação e da supervisão das emendas aceitas e rejeitadas pelo tradutor que o inesperado se deu. Eu estava grávida, mas esperava que a minha filha aguentasse as pontas e me deixasse concluir a edição do livro, só dando o ar da graça lá pela última semana de janeiro. Porém, no dia 12 tive que correr para o hospital e delegar tudo da Interpretação para a minha colega, a editora Janine Mogendorff.
Não me entendam mal: eu confiaria (e confio) tudo à Janine. Somos unha e carne, cu e cueca, etc. Mas – quem é editor vai me entender – eu queria levar esse livro pela mão até o final. Só que a natureza não está nem aí para veleidades intelectuais, e lá me fui para cinco meses de licença-maternidade.
Pula para junho de 2012: a Dora, minha filha, tá com 5 meses, linda, lépida e faceira, e eu volto a trabalhar. Para minha felicidade, o processo de edição de A interpretação não estava concluído, e pude acompanhar as etapas finais. A revisão paginada foi feita pela Lia Cremonese, que também já tinha trabalhado nos dois Freuds anteriores, e o Renato, anos depois de concluída a tradução, fez mais uma leitura. Fizemos alguns ajustes na paginação, melhoramos os cabeçalhos, revimos os índices, revimos tudo mais uma vez, incluímos na página de créditos o logo do Goethe Institut (o livro recebeu um subsídio de tradução do governo alemão), liberei os arquivos, a Lúcia Bohrer mandou o livro para a gráfica, a Janine conferiu as provas, repassamos os últimos detalhes, e chegou a hora em que era necessário largar a mão do livro e confiar que ele caminharia sozinho.
Então, cinco anos depois do início de tudo, depois de a publicação ser programada e reprogramada várias vezes, chega o resultado. Mal dá para acreditar. É uma felicidade, ao mesmo tempo que um alívio, ver A interpretação pronta. Se como editora foi um privilégio ficar encarregada dessa edição, é também um privilégio para o leitor ter a possibilidade de ler um texto dessa envergadura numa tradução direta e numa edição acessível sob todos os pontos de vista – privilégio que nem todos os países gozam.
Partilho com o leitor o trecho que mais me chamou a atenção durante o processo de edição: uma nota à edição de 1909 sobre a relação da vida intrauterina e do ato do nascimento com a crença na vida após a morte:
“Apenas tardiamente aprendi a avaliar o significado das fantasias e dos pensamentos inconscientes acerca da vida no ventre materno. Eles contêm não só a explicação para o medo singular que muitas pessoas sentem de serem enterradas vivas, como também a motivação inconsciente mais profunda para a crença numa continuação da vida após a morte, crença que apenas figura a projeção no futuro dessa vida inquietante antes do nascimento. Aliás, o ato do nascimento é a primeira experiência de angústia e, assim, a fonte e o modelo para esse afeto.”
A todos os estudiosos e curiosos, boa leitura!
*Caroline Chang é editora da L&PM e escreveu este texto em 31 de outubro de 2012. “A interpretação dos sonhos” é publicada em em dois volumes na Coleção L&PM Pocket e também em um só volume na Série Ouro.