Por Ivan Pinheiro Machado*
O Luis Claúdio Cunha, combativo jornalista e autor do clássico “Operação condor: o sequestro dos uruguaios” (L&PM, 2009) me alertou no ano passado (2010) que a Casa Civil da Presidência da República estava disponibilizando, para qualquer cidadão brasileiro, sua ficha (se houvesse) junto aos órgãos de segurança durante o período da Ditadura Militar (1964-1985). Embora eu jamais tenha me considerado um perigoso subversivo, por curiosidade, solicitei formalmente ao Gabinete da Presidência da República a minha “folha corrida” nos órgãos de segurança e repressão da ditadura militar..
Sinceramente, achava que receberia uma resposta tipo “nada consta”. Eis que, poucos dias depois, aterrissou na minha mesa um envelope pardo enviado por Sedex, cujo remetente era “Casa Civil da Presidência da República”, com brasão e tudo. Abri o envelope. Havia termos de responsabilidade, confidencialidade, etc, e um aviso dizendo que aquilo era um resumo de cada registro em meu nome, junto ao Serviço Nacional de Informações (SNI), no período entre 1974 e 1985. Caso eu desejasse as informações detalhadas, teria de fazer nova solicitação. As informações resumidas, com o número de cada “ocorrência”, compreendiam umas dez páginas, com mais de 30 registros. Muitas delas me ligavam ao meu pai e ao Paulo Lima, meu sócio até hoje, e ao jornalista Mario Lima, pai do Paulo, todos nós descritos como perigosos subversivos. Registravam os livros ditos “perigosos para o regime” que lançávamos e incluía como fato altamente subversivo, uma jornalzinho de humor, o “Risco”, que editávamos no início da década de 80. Há registros tais como “Ivan Gomes Pinheiro Machado chegou em Frankfurt, Alemanha, em 14 de outubro de 1976. Em 18 de outubro já estava em Londres, Inglaterra, hospedado na casa de Douglas Aguiar… Em seguida foi para Lisboa onde participou de reuniões com grupos de exilados e elementos anti-regime liderados por Josué Guimarães, Fernando Gasparian…” e por aí vai. Havia menções também a conversas com o “perigoso subversivo Flavio Koutzii, recém chegado da Argentina”. Os registros do SNI descreviam minuciosamente os nossos passos quando ciceroneamos em Porto Alegre Luis Carlos Prestes, na sua volta do exílio. Prestes era amigo e antigo companheiro de partido do meu pai. Enfim, havia nos resumos cifrados, numerados e carimbados, outros detalhes da minha vida na década de 70 de que eu até já havia esquecido. Li atentamente tudo aquilo e fiquei pensando, pensando. A gente era permanentemente espionado e não sabia. Ou melhor, suspeitávamos que éramos espionados, mas isto sempre se punha na conta da paranóia geral daqueles tempos. “Cuidado com o telefone!”, ou “Não fala alto que o fulano é do DOPS…”. Por outro lado, ingenuamente, não nos achávamos importantes para os órgãos de informação. Quando houve a primeira apreensão de livros por motivos políticos, nos demos conta de que nossa atividade era de risco; aqueles que faziam livros, para uma ditadura, eram mais perigosos do que os criminosos comuns.
Lembro até de uma frase do Millôr Fernandes, sobre aqueles tempos sombrios: “Nós temos muita importância para sermos presos e nenhuma importância para sermos soltos…”. Era bem isso. Hoje se vê; quanto dinheiro eles gastavam para espionar os cidadãos! Estabelecer conexões para xeretear a viagem de um menino de 23 anos em Frankfurt, Londres, Lisboa! Os documentos oficiais que me chegaram às mãos comprovam como uma ditadura é burra, insensível e dispendiosa. Deu pra ver que tínhamos, sim, razões para ter medo. E deu também para chegar a uma melancólica conclusão sobre a natureza humana. Há, nestas dezenas de folhas que eu recebi da Casa Civil, informações quase íntimas, que faz supor que o inimigo/informante, se não estava ao lado, estava muito próximo e muitas vezes, quem sabe, sentado na nossa mesa no bar…
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