Cinco anos depois: sobre a experiência de editar a primeira tradução brasileira direta de “A interpretação dos sonhos”
Por Caroline Chang*
Hoje fiz as contas: faz cinco anos que começamos o projeto de publicar a obra de Freud, iniciando com A interpretação dos sonhos, traduzido direto do alemão (coisa que não tinha sido feita, ainda; os leitores brasileiros liam A interpretação ou numa tradução da versão em inglês de James Strachey, ou em espanhol). Vendo retrospectivamente, foi uma aventura e tanto, que relembro aqui.
A ideia era nos prepararmos para a entrada da obra freudiana em domínio público, que ocorreria em 1º de janeiro de 2010. Trata-se de um marco importante: a partir dessa data, qualquer pessoa ou editora que quisesse publicar os textos freudianos, em alemão ou em tradução, poderia fazê-lo, sob o ponto de vista legal de direitos autorais. O que significa que pela primeira vez o pensamento deste grande homem estaria (está) disponível para os leitores em várias traduções e edições, numa pluralidade de opções e leituras que só posso ver como bem-vinda.
O início do projeto envolveu a Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre. Queríamos um colegiado de estudiosos de Freud que pudesse nos apontar, dentre a imensidão de textos escritos pelo pai da psicanálise, uma lista inicial de obras a serem editadas (sobre a fértil genialidade de Freud, não posso deixar de pensar: sorte nossa que não havia televisão naquela época). Não poderia ficar fora dessa lista A interpretação, primeira obra psicanalítica do autor no sentido de que é nela que ele afirma a existência e explica parte do funcionamento de uma novidade chamada “inconsciente”.
O passo seguinte: encontrar um tradutor para a tarefa hercúlea. Hercúlea não apenas pelo alentado tamanho do texto – em torno de 650 laudas –, mas pela importância (inclusive simbólica) do trabalho; pela dificuldade da terminologia psicanalítica (que na Interpretação ainda não é tratada com rigor pelo próprio Freud); e pelo fato de que esse é um dos textos mais “duros” do autor, estilisticamente falando. Nele Freud ainda se prende um tanto a um estilo acadêmico do qual depois se despojará, como se vê em Totem e tabu, considerado um de seus textos mais elegantes.
A escolha natural recaía sobre Renato Zwick, jovem tradutor, ex-estudante de psicologia que já havia vertido para a L&PM, entre outras, O mal-estar na cultura e O futuro de uma ilusão, duas obras freudianas mais curtas e mais simples.
Como diz a frase usualmente atribuída a Cocteau, “Não sabendo que era impossível, ele foi lá e fez”. O Renato, com sua têmpera germânica, recebeu o convite, ponderou-o e aceitou a missão. Acordamos que a tradução se basearia na Studienausgabe da S. Fischer Verlag. O conceito da edição que queríamos – voltada para o público em geral, não apenas para estudiosos, psicanalistas e especialistas – o Renato já conhecia. Entre ele começar a estudar o trabalho e entregar a última parcela da tradução, foram-se quase dois anos. Recebi o arquivo final em dezembro de 2010.
O ano de 2011 foi todinho de revisões. Primeiro li o texto e sugeri várias modificações para o tradutor. Então o Renato fez as alterações necessárias e me devolveu o arquivo. Encomendei então a revisão técnica da igualmente destemida Tania Rivera, psicanalista e professora da Universidade de Brasília. Imbuída da importância da tarefa, a Tania fez uma leitura à altura. Além de várias observações e sugestões de alterações terminológicas, foi dela a ideia de sinalizar, na nossa edição, os trechos e notas que Freud foi acrescentando à Interpretação à medida que o livro, originalmente de 1899, ia sendo reeditado.
Sem se mixar para o desafio de redigir o texto de apresentação da primeira tradução direta de uma obra dessa envergadura, junto com a revisão técnica a Tania também entregou seu texto, intitulado “O sonho e o século”. Foram-se mais algumas semanas de leituras internas da apresentação e solicitações de alteração para tornar o texto acessível a todo tipo de leitor (inclusive ao leitor que estivesse se deparando com Freud pela primeiríssima vez).
Enquanto isso eu tinha que explicar pro Ivan Pinheiro Machado, publisher da casa e meu chefe, por que um livro que já tinha custado uma pequena fortuna ia atrasar mais uma vez.
Foi então o momento de “mediar” os argumentos da Tania e do Renato em relação a trechos específicos – geralmente o Renato defendia a visão germanista da coisa, levando sobretudo em consideração a língua em que o texto foi escrito, enquanto a Tania tinha uma visão mais psicanalítica. Depois de muitos e-mails, arquivos para lá, arquivos para cá, acho que quem saiu ganhando foi o livro – e o leitor. (Aliás, uma das coisas legais de editar o Freud é justamente o intercâmbio com pessoas preparadíssimas, de alto nível e comprometidas com a causa como a Tania e o Renato.)
Em seguida demoramos mais um bom tempo para inserir as marcações de acréscimos a edições posteriores feitas por Freud. Chegamos à conclusão de que a melhor maneira de sinalizar isso era como fora feito pela Presses Universitaires de France: apresentar um risco vertical ao lado do trecho acrescentado e, ao final do referido trecho, informar entre colchetes o ano do acréscimo.
Como fazer isso no editor de texto? Como transpor essa marcação para o programa de paginação? A solução que encontramos foi sublinhar todos os trechos a serem destacados, para que a Mônica Bohrer, mais tarde trabalhando no InDesign, pudesse inserir os riscos verticais nas margens das páginas e apagar o sublinhado.
Devo dizer que sou uma franca admiradora do dr. Sig. Tenho uma tia que é psicóloga, fiz terapia desde os sete anos e sou adepta da análise. Tenho plena convicção de que devia estar assegurado na Constituição o direito de todo cidadão fazer análise uma vez na vida, pelo menos. Daí o senso de responsabilidade – ou melhor dizendo, o nervosismo que tomou conta de mim durante todo esse processo de edição. Deus me livre fazer feio logo com a obra mais emblemática desse gênio, a quem devo tanto da minha saúde mental. Havia grandes chances de que a nossa edição fosse a primeira tradução direta a ser lançada no Brasil, e eu sabia que, embora estivéssemos pensando no leitor em geral, todos os olhos psicanalíticos – freudianos, lacanianos, junguianos, kleinianos etc. – estariam voltados para nós. A discussão de cada termo me parecia crucial. Toda decisão editorial era tomada com muito cuidado, pesando prós e contras.
Uma vez acrescentada a biografia dos colaboradores, o “Itinerário para uma leitura de Freud”, de autoria dos psicanalistas e professores Edson Sousa e Paulo Endo, bem como os índices ao final do livro, decidimos publicar A interpretação em dois volumes, tal como acontece na Argentina (me refiro à edição da Amorrortu, que, como as outras duas edições estrangeiras já citadas, consultamos muitas e muitas vezes). Definição de onde vai terminar o primeiro volume e começar o segundo; da numeração das páginas; como seriam os sumários, a numeração das notas etc. Finalmente lá estavam os arquivos finais, prontos para a preparação. Que ficou a cargo da Patrícia Yurgel, que já fizera um bom trabalho com textos de Freud.
Foi durante o acompanhamento da preparação e da supervisão das emendas aceitas e rejeitadas pelo tradutor que o inesperado se deu. Eu estava grávida, mas esperava que a minha filha aguentasse as pontas e me deixasse concluir a edição do livro, só dando o ar da graça lá pela última semana de janeiro. Porém, no dia 12 tive que correr para o hospital e delegar tudo da Interpretação para a minha colega, a editora Janine Mogendorff.
Não me entendam mal: eu confiaria (e confio) tudo à Janine. Somos unha e carne, cu e cueca, etc. Mas – quem é editor vai me entender – eu queria levar esse livro pela mão até o final. Só que a natureza não está nem aí para veleidades intelectuais, e lá me fui para cinco meses de licença-maternidade.
Pula para junho de 2012: a Dora, minha filha, tá com 5 meses, linda, lépida e faceira, e eu volto a trabalhar. Para minha felicidade, o processo de edição de A interpretação não estava concluído, e pude acompanhar as etapas finais. A revisão paginada foi feita pela Lia Cremonese, que também já tinha trabalhado nos dois Freuds anteriores, e o Renato, anos depois de concluída a tradução, fez mais uma leitura. Fizemos alguns ajustes na paginação, melhoramos os cabeçalhos, revimos os índices, revimos tudo mais uma vez, incluímos na página de créditos o logo do Goethe Institut (o livro recebeu um subsídio de tradução do governo alemão), liberei os arquivos, a Lúcia Bohrer mandou o livro para a gráfica, a Janine conferiu as provas, repassamos os últimos detalhes, e chegou a hora em que era necessário largar a mão do livro e confiar que ele caminharia sozinho.
Então, cinco anos depois do início de tudo, depois de a publicação ser programada e reprogramada várias vezes, chega o resultado. Mal dá para acreditar. É uma felicidade, ao mesmo tempo que um alívio, ver A interpretação pronta. Se como editora foi um privilégio ficar encarregada dessa edição, é também um privilégio para o leitor ter a possibilidade de ler um texto dessa envergadura numa tradução direta e numa edição acessível sob todos os pontos de vista – privilégio que nem todos os países gozam.
Partilho com o leitor o trecho que mais me chamou a atenção durante o processo de edição: uma nota à edição de 1909 sobre a relação da vida intrauterina e do ato do nascimento com a crença na vida após a morte:
“Apenas tardiamente aprendi a avaliar o significado das fantasias e dos pensamentos inconscientes acerca da vida no ventre materno. Eles contêm não só a explicação para o medo singular que muitas pessoas sentem de serem enterradas vivas, como também a motivação inconsciente mais profunda para a crença numa continuação da vida após a morte, crença que apenas figura a projeção no futuro dessa vida inquietante antes do nascimento. Aliás, o ato do nascimento é a primeira experiência de angústia e, assim, a fonte e o modelo para esse afeto.”
A todos os estudiosos e curiosos, boa leitura!
*Caroline Chang é editora da L&PM e escreveu este texto em 31 de outubro de 2012. “A interpretação dos sonhos” é publicada em em dois volumes na Coleção L&PM Pocket e também em um só volume na Série Ouro.