Por Ivan Pinheiro Machado*
Em 1985, depois de cair enfermo na véspera da posse, o primeiro presidente civil pós-golpe de 1964, Tancredo Neves, morreu 39 dias depois, emblematicamente no dia de Tiradentes, 21 de abril de 1985. Pelo seu estilo afável, conciliador, ideais democráticos, oratória impecável – e por ser o presidente que levaria o Brasil definitivamente à democracia – Tancredo Neves era admirado pelo povo brasileiro. A partir de sua doença, ele passou a ser cultuado e amado como um super pop star. Uma agonia que foi acompanhada minuto a minuto pela TV e trouxe junto para o panteão das celebridades o seu porta-voz: Antônio Britto. Britto era o homem que, com ar compungido e espessa barba escura, comunicava diariamente a 120 milhões de brasileiros, o estado de saúde do presidente que não conseguira assumir. Britto e Tancredo se confundiam no imaginário do povo. Competente como jornalista, Britto passou pelos principais jornais do Rio Grande do Sul e chegou a ser o mais respeitável repórter da TV Globo. Tancredo convidou-o para ser seu porta-voz. Com a morte do presidente, Britto iniciou brilhante carreira política. Foi o deputado mais votado no Rio Grande, Ministro da Previdência e depois Governador do Estado. No século 21, abandonou a política e hoje é um vitorioso empresário.
Pois bem. Quando morreu Tancredo, assumiu José Sarney, o vice. Com a Nação paralisada, através de meu irmão, José Antonio, contatamos Britto que estava escondido em algum lugar da serra gaúcha. Éramos todos ex-colegas de jornal, tanto no Correio do Povo, como na Zero Hora. Utilizando uma operação de inteligência sofisticadíssima, secretíssima e impecável, conseguimos descobrir onde estava Antônio Britto. E numa noite de neblina espessa, num hotel nos arredores de Gramado, combinamos que Britto juntamente com o jornalista Luis Cláudio Cunha, faria o livro contando tudo sobre a agonia e morte de Tancredo Neves. Uma verdadeira bomba (do bem) editorial estava nas nossas mãos. Acertamos todos os detalhes e, excitadíssimos com a novidade, descemos a serra em condições precaríssimas, já que um fog praticamente intransponível e característico do outono gaúcho tomava conta da estrada sinuosa e perigosa.
O Dudu Guimarães era um personagem folclórico entre o meio jornalístico. No legendário bar do IAB, ele sempre estava lá, rodando de mesa em mesa, sabendo de tudo que acontecia. Ele falava com todo mundo e acabava sempre sentado na mesa do cineasta Jorge Furtado, de quem antevia o futuro brilhante. Mas se chegasse no bar, por exemplo, o Chico Buarque, Caetano Veloso ou algum outro músico da moda, ou quem sabe um filósofo famoso ou um escritor célebre, em poucos instantes o Dudu abandonava a mesa de Jorge Furtado e se aboletava na mesa do ídolo.
Mas voltemos a 24 de abril de 1985, dia em que contratamos o grande bestseller do ano. Conseguimos transpor a neblina da serra, chegamos a Porto Alegre e logo o Eduardo “Peninha” Bueno, que trabalhava na L&PM, quis saber o motivo de tanta alegria. Eu e o Lima dissemos que não podíamos contar. Ele insistiu. Falamos que ele era boca grande demais. Ele continuou insistindo para saber o que estava acontecendo. Até que diante de tantos pedidos (e do juramento de que se aquela notícia vazasse ele seria demitido) contamos para o Peninha que o Britto escreveria o livro. Ele era a quarta pessoa a saber e jurou não contar nada. Juntos, decidimos comemorar nosso enorme segredo numa festa que se realizava todos os anos no antigo cinema Castelo no bairro da Azenha em Porto Alegre. O Troféu Scalp. Uma espécie de sacanagem ao Oscar, onde o Scalp, um grande salão de cabelereiros, oferecia um troféu estranhíssimo aos destaques do ano na área cultural. Na verdade, a entrega dos troféus era pretexto para um grande e imperdível baile pop. Saímos direto da editora para lá.
Ninguém, na imprensa brasileira sabia onde estava Britto. Todos queriam o seu depoimento e caçavam o porta-voz de Tancredo em Minas, Rio, São Paulo, Bahia. Uma complexa operação que envolveu até vôo privado, levara Britto em segredo para longe do mundo, oculto na neblina da serra gaúcha. Juramos que não falaríamos nada para ninguém. Nem do seu paradeiro, nem do livro. Éramos quatro cúmplices de um mesmo segredo.
Horas depois deste solene pacto, entramos lépidos e saltitantes, o Peninha e eu no cinema Castelo, já sonhando com o futuro super-betseller. Pois o Dudu Guimarães estava presente na festa (óbvio). Levantou-se subitamente da mesa do Jorge Furtado, onde havia ancorado – como sempre – e veio em nossa direção. Sorria – como sempre também – por trás de seus óculos de lentes espessas e embaçadas. Deu um abraço apertado no Peninha e perguntou:
– Vão lançar o livro do Britto, hein?!
Foi então que nosso mundo caiu.
P.S.: nosso sonho de bestseller se concretizou 30 dias mais tarde, quando o livro “Assim morreu Tancredo” estourou no Brasil vendendo mais de 200 mil exemplares. E nunca ficamos sabendo quem contou para o Dudu.
*Toda terça-feira, o editor Ivan Pinheiro Machado resgata histórias que aconteceram em mais de três décadas de L&PM. Este é o vigésimo oitavo post da Série “Era uma vez… uma editora“.