SOMBRAS E DORES DA DITADURA
Sergius Gonzaga*
Quando Josué Guimarães escreveu É tarde para saber, em 1976, o Brasil ainda vivia sob o signo de uma longa ditadura militar que se estendeu por vinte anos (1964-1984). Apesar de seu projeto desenvolvimentista, do crescimento econômico ocorrido, em especial nos primeiros anos da década de 1970, e da unificação definitiva do país através de uma múltipla rede de comunicações (televisão, correios, telefonia), o regime autoritário trouxe consigo um universo de sombras e dores. (…) Centenas de rapazes e moças, ultrapassando o medo, a dor, a ameaça da tortura – praticada indiscriminadamente em quartéis e delegacias de polícia -, ultrapassando o próprio horror à morte, fizeram da luta armada a sua situação-limite, o seu enfrentamento radical com o sistema. Despreparados do ponto de vista militar, sem entender o processo social, cultural e econômico que o Brasil experimentava, sem lideranças capazes ou representativas, sem calcular a força brutal do inimigo, inocentes e, ao mesmo tempo, aventureiros, muitos desses jovens foram fácil e impiedosamente derrotados pelas forças repressivas.
Escrever sobre um deles, como Josué o fez em É tarde para saber, exigia coragem e sutileza, porque a ditadura continuava com seu manto assustador de censura, intimidação e controle das existências individuais. Coube também ao escritor, através da figura de Mariana, evocar uma parte da juventude brasileira que se mantinha alienada do que ocorria nos substerrâneos do regime. Fez isso sem acusá-la ou reprová-la. Simplesmente desvelou sua inocente inconsciência, produzindo assim um estranho romance político em que não se discute política. Por isso, mais do que uma bela história de amor adolescente, mais do que um Romeu e Julieta ambientado no Rio de Janeiro de algumas décadas atrás, mais do que um relato de suspense, esta novela é uma obra de grande tradição realista brasileira e ocidental: uma obra que, simultaneamente, mostra e desmascara o seu tempo histórico.
* Sergius Gonzaga é Secretário de Cultura de Porto Alegre, professor, editor, especialista em literatura brasileira e grande conhecedor da obra de Josué Guimarães. Este texto é parte da introdução da edição de É tarde para saber da Coleção L&PM Pocket.
Nunca é tarde para ler Josué Guimarães
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