Por Jorge Furtado*
A primeira tradução de Hamlet que se tem notícia foi feita, veja só, para o português. A proeza se deu em 1607 a bordo do navio inglês Red Dragon, ancorado na costa Oeste da África, e seu autor foi Lucas Fernandez, um negro nascido em Serra Leoa.
O Red Dragon fazia parte de uma frota de três galeões a serviço da Companhia das Índias Ocidentais, em sua terceira expedição. Um dos navios tomou ventos em direção ao Brasil, mas o Red Dragon e o Hector enfrentaram longas calmarias. Para reabastecer e tratar doentes, ancoraram no porto de Freetown, na foz do Rio Mitombo, em Serra Leoa.
No dia 5 de setembro de 1607, o capitão do Red Dragon, William Keeling, recebeu a bordo um grupo de emissários do Rei Borea, entre eles seu cunhado e intérprete, descrito em seus diários como “um negro chamado Lucas Fernandez, que falava português muito bem”, e por outras testemunhas como um cristão capaz “argumentar bem em defesa de sua fé”, fluente em português, espanhol, inglês e temne, o dialeto local.
O Capitão Keeling registrou o encontro no diário de bordo:
5 de setembro. Enviei o intérprete, de acordo com seu desejo, a bordo do Hector, onde ele fez seu desjejum, e depois veio a bordo [do Red Dragon], onde nós apresentamos a tragédia de Hamlet, e na parte da tarde fomos todos juntos à terra, para ver se podíamos caçar um elefante; acertamos sete ou oito balas nele, o que o fez sangrar abundantemente, como pode se ver em seus rastros, mas a noite se aproximava e regressamos ao navio, sem atingir nossos propósitos.
Lucas Fernandez fez a tradução simultânea de Hamlet, encenado pela tripulação inglesa. É bom lembrar que em setembro de 1607 Shakespeare estava vivo, muito vivo, no auge de sua carreira: nos últimos três anos ele havia escrito sete peças, entre elas Otelo, Rei Lear e Macbeth. No momento, estava em cartaz no Globe com os King’s Men na recém escrita “Péricles”. Não há registros – e é muito improvável – de que tenha tomado conhecimento de que sua maior criação, Hamlet, já tinha sua primeira tradução, para o português.
A primeira tradução de Shakespeare sobre a qual há registro, de Romeu e Julieta, foi feita em 1604, para o alemão, o autor é desconhecido. A segunda tradução – a primeira de Hamlet e a primeira fora da Europa – foi a de Lucas Fernandez, para o português. O feito é ainda mais notável quando sabemos que a segunda tradução conhecida de Hamlet, esta para o alemão, só vai aparecer em 1626, quando Shakespeare já estava morto há 10 anos.
Traduzir é fazer escolhas. Sabe-se lá como Lucas Fernandez traduziu para o português as primeiras palavras da peça, a fala de Bernardo, de sentinela, ao perceber que alguém se aproxima: “Who’s there?” Sua escolha pode ter sido “Quem está aí?” (como fizeram os tradutores Cunha Medeiros e Oscar Mendes, Sophia de Mello Breyner, Millôr Fernandes, Oliveira Ribeiro Neto, José Roberto O’Shea), ou “Quem está lá?” (Anna Amélia Carneiro de Mendonça, Mario Fondelli), ou ainda “Quem vem lá?” (Péricles Eugênio da Silva Ramos, Domingos Ramos, Elvio Funk, Marilise Rezende Bertin e John Milton).
*Jorge Furtado é diretor, roteirista e escritor. Pela L&PM publicou Meu tio matou um cara. Este texto foi publicado originalmente no blog da Casa de Cinema de Porto Alegre em 24 de agosto de 2011.
Interessante, muito interessante. Informação preciosa. Saudações tricolores