No prefácio do livro Cartier-Bresson – o olhar do século, que acaba de chegar à Coleção L&PM Pocket, o biógrafo Pierre Assouline não se constrange em assumir publicamente sua paixão pelo biografado. E diferente do que podem pensar os mais puristas, isto não é demérito algum. Pelo contrário: ele consegue contaminar o leitor, que embarca numa instigante viagem pela vida de um dos maiores fotógrafos que o mundo já conheceu.
Sob o título “Quando o herói se torna um amigo”, o prefácio de Pierre começa descrevendo como foi seu primeiro encontro com Cartier-Bresson em 1994 e segue dando pistas da personalidade que ele ajudou a desvendar nas páginas que seguem, deixando o leitor com água na boca. Bem no início, ainda é possível identificar algum compromisso com a objetividade exigida de um jornalista em relação a seu objeto de trabalho. Mas depois de alguns parágrafos, ele sucumbe à emoção:
É curioso bater nas costas de um mito, insólito contradizer uma lenda, estranho interpelar uma instituição, arriscado criticar um clássico, audacioso corrigir um monumento… No Japão, diriam que ele é um tesouro nacional vivo. Com um levantar de ombros, um gesto da mão, Henri Cartier-Bresson liquida esse falso problema. Considera todas essas palavras verdadeiros palavrões. Até mesmo o suave nome de “artista” o exaspera, tanto vê nele uma noção burguesa herdada do século anterior.
Apesar do encanto, é impossível não mencionar o já conhecido temperamento difícil do mestre da fotografia como traço marcante de sua personalidade:
Cartier-Bresson é a impaciência em pessoa, mas também a curiosidade, a indignação, o entusiasmo e a cólera. Esse meditativo frenético não para no lugar, incapaz de dominar seu próprio temperamento, como se a verdadeira vida estivesse sempre no movimento. Sua intranquilidade acaba por perturbar a paisagem. Ele é daqueles que devem sua nobreza à excentricidade. Nada o deixa mais secretamente feliz do que fazer um uso deliberado do aristocrático prazer de desagradar. Quando pensamos em tudo o que seus olhos viram, sentimos vertigens.
Assouline finaliza sua longa e rasgada introdução preparando o leitor para as páginas que vêm a seguir:
Se quisermos entender Henri Cartier-Bresson, precisamos nos desfazer da concepção tradicional de tempo e assimilar outra, às vezes anacrônica, em que o calendário dos fatos não necessariamente coincide com o das emoções. Precisamos também levar em conta que o tempo do relógio não é o mesmo do homem, que cada um tem sua mística interior e que contar os acontecimentos de uma vida sem levar em conta a própria lógica seria tão inútil quanto lembrar uma ópera por seu libreto. Proust disse tudo isso, e mais: “Há dias montanhosos e árduos que levamos um tempo infinito a escalar, e dias de declive que se deixam percorrer a toda velocidade, cantando”.
Cartier-Bresson passou sua vida assim. Ele não viajou, ele morou no exterior sem se perguntar quando voltaria. Mais do que uma sutileza, trata-se de outra compreensão do mundo. Sua obra é prova disso.
Cartier-Bresson – o olhar do século foi publicado pela primeira vez pela L&PM em 2003, em formato convencional, e agora chega à Coleção L&PM Pocket com o mesmo conteúdo da edição anterior, encarte com fotos e tudo mais, só que em formato de bolso. (Nanni Rios)