Dashiell Hammet foi uma lenda literária. Autor de O falcão maltês, editor da legendária revista Black Mask, detetive da Agência Pinkerton, o homem que foi destruído fisicamente pela perseguição política no período do macarthismo, foi um dos maiores escritores americanos de todos os tempos e, junto com Raymond Chandler, fundou o gênero noir, elevando as histórias policiais à categoria de grande literatura. Quando tinha 36 anos, Hammet conheceu a jovem Lillian Hellman, então com 24 anos, em um restaurante de Hollywood. Lillian se tornaria também uma grande escritora e dramaturga e, entre idas e vindas, os dois foram companheiros por 30 anos. O livro de contos O grande golpe, de Hammett, publicado pela Coleção L&PM Pocket, traz um prefácio de Lillian. É um emocionante relato escrito após a morte de Hammett. Leia aqui alguns trechos:
A morte dele chegou há quase cinco anos, em 10 de janeiro de 1961. (…) Quando conheci Dash, ele havia escrito quatro de seus cinco romances e era o escritor mais quente em Hollywood e Nova York. Não é extraordinário ser o mais quente em nenhuma das duas cidades – o novato mais quente muda a cada estação -, mas, no caso dele, era um interesse extra para os colecionadores de gente o fato de que o ex-detetive, que tinha cicatrizes nas pernas e uma reentrância na cabeça por brigar com bandidos, era um homem de boas maneiras, bem-educado, com visual elegante, descendente dos primeiros colonizadores, excêntrico, espirituoso e gastava tanto dinheiro com as mulheres que elas teriam gostado dele mesmo sem nenhuma dessas qualidades.
Na Primeira Guerra Mundial, no campo de batalha, a gripe o levou à tuberculose, e Hammet teve de passar anos em hospitais militares. Saiu da Segunda Guerra Mundial com efisema, mas como foi que ele chegou a entrar na Segunda Guerra Mundial, aos 48 anos de idade, é algo que ainda me desconcerta. Ele me ligou no dia em que o exército o aceitou para dizer que era o dia mais feliz de sua vida e, antes que eu pudesse dizer que não era o dia mais feliz da minha vida e perguntar sobre as velhas cicatrizes de seu pulmão, ele riu e desligou. Sua morte foi causada por um câncer de pulmão descoberto apenas dois meses antes de ele morrer. Como não era possível operar – duvido que ele tivesse concordado em fazer a cirurgia mesmo que fosse – resolvi não lhe contar sobre o câncer. O médico disse que quando começasse a dor, seria no braço direito e no lado direito do peito, mas disse também que ela podia nem começar. O médico estava errado: bastaram algumas horas para que a dor começasse. Hammett havia autodiagnosticado reumatismo no braço direito e sempre dizia que por causa dele havia desistido das caçadas. No dia em que fiquei sabendo do câncer, ele disse que o seu ombro da arma estava doendo de novo e pediu que eu lhe fizesse uma massagem. Lembro de me sentar atrás dele e massageá-lo torcendo para que ele sempre pensasse que era reumatismo e lembrasse das caçadas de outono. Mas a dor nunca mais voltou ou, se voltou, ele nunca mais disse nada. Ou talvez a morte estivesse tão próxima que a dor no ombro se fundiu com outras dores.
Ele não queria morrer, e gosto de pensar que ele não sabia que estava morrendo. Mas até hoje afasto de mim mesma o possível significado de uma noite, muito tarde, pouco antes de sua morte. Entrei no quarto dele e, pela única vez em todos os anos em que convivemos, havia lágrimas em seus olhos, e o livro estava fechado. Sentei-me ao seu lado e esperei um bom tempo antes de conseguir dizer:
– Você quer conversar?
Ele respondeu quase com raiva:
– Não. A minha única chance é não falar.
E ele nunca falou. Sua paciência, sua coragem e sua dignidade naqueles meses de sofrimento foram muito grandes. Foi como se tudo o que faz a vida de um homem tivesse se reunido para passar no teste: sofrer era uma questão particular. Que não devia ser invadida. Era raro até mesmo que ele pedisse alguma coisa.
Na véspera do ano-novo, em 1960, deixei Hammett aos cuidados de uma simpática enfermeira e fui passar algumas horas com amigos. Fui embora da casa deles às onze e meia, sem saber que a enfermeira começou a me ligar alguns minutos depois. Quando entrei no quarto de Hammett, ele estava sentado à escrivaninha, com o rosto tão entusiasmado e excitado como nos tempos em que bebia. No colo, um pesado livro de gravuras japonesas que havia comprado muitos anos antes e de que gostava muito.
– Olhe para isso, querida. É maravilhoso.
Quando me aproximei, a enfermeira se afastou, mas ele pegou a mão dela e a beijou, com o mesmo jeito charmoso e sedutor dos bons tempos, erguendo o olhar para piscar para mim. O livro estava de cabeça para baixo, de modo que a enfermeira nem precisou resmungar a palavra “irracional”. Dali em diante – nós o levamos para o hospital no dia seguinte – nunca soube nem jamais saberei o que o irracional quer dizer. Hammet recusava qualquer medicação, qualquer ajuda de enfermeiras e médicos, numa espécie de determinada e misteriosa desconfiança. Antes da noite do livro de cabeça para baixo, nosso plano era nos mudarmos para Cambridge, porque eu havia sido contratada para lecionar em Harvard. Um livro de cabeça para baixo deve ter me dito que o fim havia chegado, mas eu não queria pensar dessa maneira, de modo que fui para Cambridge, encontrei uma casa de saúde para Dash e voltei naquela noite para lhe contar a respeito. Ele perguntou:
– Mas como vamos para Boston?
Respondi que contrataríamos uma ambulância e acho que pela primeira vez na vida ele disse:
– Vai ser muito caro.
Respondi:
– Se for, iremos de carroça coberta.
Ele sorriu e disse:
– Talvez fosse assim que devêssemos ter viajado, afinal.
Então me senti melhor naquela noite, segura de uma prorrogação. Eu estava errada. Antes das seis da manhã do dia seguinte, ligaram do hospital. Hammett havia entrado em coma. Quando atravessei o quarto até a sua cama, houve um último sinal de vida: seus olhos se abriram, surpresos, e ele tentou levantar a cabeça. Mas ele nunca mais recuperou a consciência. Morreu dois dias depois.
De Dashiell Hammett, a Coleção L&PM Pocket publica, além de O grande golpe, Mulher no escuro, Tiros na noite: a mulher do bandido e Tiros na noite: medo de tiro. Leia o prefácio de O grande golpe na íntegra aqui.