Antes de virar a mais publicada e traduzida escritora policial de todos os tempos, Agatha Christie trabalhou como enfermeira. Cerca de um ano antes da I Guerra Mundial começar – sem saber que o século XX entraria em um conflito sem precedentes – ela matriculou-se em um dos populares cursos de enfermagem para moças que existia na época. No curso, teve contato com alguns venenos que, mais tarde, fariam parte de seus romances. Um deles, chamado curare, foi apresentado à jovem Agatha pelo Sr. P (modo como a escritora se refere a ele em sua autobiografia). O Sr. P era um famoso farmacêutico da cidade que foi professor de Agatha Christie e uma espécie de inspiração para que ela criasse, em 1961, O Cavalo Amarelo, considerado seu livro mais forte e que já está na Coleção L&PM Pocket.
O Sr. P era um homem estranho. Um dia, procurando talvez impressionar-me, tirou do bolso um pedaço de uma matéria escura e mostrou-me dizendo:
“Sabe o que é isso?”
“Não.”
“É curare. Sabe o que é curare?”
Respondi que já lera algo a respeito.
“Interessante. Muito interessante. Tomado pela boca, é totalmente inofensivo. Se entrar, porém, na circulação sanguínea paralisa e mata. É o que certas tribos usam para envenenar as setas. Sabe por que trago isso em meu bolso?”
“Não. Não faço a menor ideia.” Parecia-me uma bobagem total carregar curare no bolso, mas isso eu não acrescentei.
“Pois bem, vou dizer-lhe”, continuou ele, pensativamente, “é porque faz com que eu me sinta poderoso.”
Então, nesse momento, olhei para ele. Era um homenzinho com uma aparência esquisita, muito redondo, fazendo lembrar um pintaroxo, com seu simpático rosto rosado. Todo ele ressumava um infantil ar de satisfação.
Pouco tempo depois terminei meu curso; continuei a pensar muitas vezes no Sr. P. Impressionara-me, porque achei que, a despeito de seu rosto de querubim, era homem potencialmente perigoso. A recordação dele perdurou em mim tanto tempo que ainda estava em minha memória, à espera, quando primeiro concebi a ideia de escrever meu livro O Cavalo Amarelo – pelo menos 50 anos depois.
(Trecho da Autobiografia de Agatha Christie)