Os mistérios começam com a dúvida a respeito do dia exato de seu nascimento: 24 ou 26 agosto? Bem, até que alguém desencave a certidão de nascimento do cidadão, o que temos é que Julio Florencio Cortázar nasceu em fins de agosto de 1914, em Ixelles, um subúrbio de Bruxelas, na Bélgica, em pleno início de um conflito sangrento que ficaria conhecido como a Primeira Guerra Mundial. Ao contrário do que habitualmente se lê nos resumos biográficos do autor, seu nascimento naquele país nada teve de acidental: seus pais, os argentinos Julio José Cortázar e María Herminia Descotte de Cortázar, junto com a avó materna do futuro escritor, Victoria Gabel, haviam chegado ali um ano antes, numa tentativa de se estabelecer na Europa. O fato é que Julio José havia sido convidado pelo sogro para administrar em Bruxelas a filial de sua firma de importação de móveis de luxo, um trabalho que não tinha nada a ver com qualquer missão comercial associada aos meios diplomáticos argentinos, outro mito repetido à exaustão na maioria das biografias de Cortázar.
Com o prosseguimento da guerra, e com a Bélgica ocupada pelas tropas alemãs, o plano acabou não dando certo: buscando refúgio num país neutro, a família, com María Herminia grávida de Ofelia, chega a Zurique, na Suíça, em outubro de 1915. Menos de dois anos depois, em junho de 1917, os Cortázar abandonam a Suíça, estabelecendo-se por algum tempo em Barcelona, de onde finalmente regressam à Argentina, em algum momento entre 1918 e 1920, quando a Grande Guerra já havia terminado. Aqui, mais um mistério (ou dois): não se conhece nem a data exata do regresso da família a Buenos Aires, nem se sabe se o pai de Cortázar ainda fazia parte do grupo familiar.
O certo é que, já sem a presença de Julio José Cortázar, a partir de 1920 a família se instala no subúrbio de Bánfield, a mais de quinze quilômetros do centro de Buenos Aires, numa casa comprada por Victoria Gabel, a matriarca da família. É nesta casa que Julio Cortázar vai passar toda a infância e a adolescência, sempre rodeado de mulheres: a avó, a mãe, a irmã Ofelia e, por algum tempo, uma prima de sua mãe, Etelvina. Este ambiente sobrecarregado da presença feminina será recordado mais tarde em contos como “Os venenos, de Final de jogo, e em muitos outros. (…)
Trecho inicial da apresentação de Sérgio Karam para A autoestrada do sul & outras histórias, de Julio Cortázar (1914-1984). Karam também foi responsável por selecionar os contos do livro.