Novos territórios em mangás

Por Alexandre Boide*

Em novembro de 2008, começou a circular na imprensa internacional a notícia de que uma adaptação em mangá de O capital, de Karl Marx, seria lançada por uma editora japonesa, a East Press, e com a expectativa de que se tornasse um best-seller. A justificativa: o Japão estava mergulhado em uma recessão profunda, o Partido Comunista local vivia um ressurgimento e a literatura anticapitalista vinha em alta no país. Uma indicação clara nesse sentido era a de que o campeão de vendas da coleção em que Das Kapital seria publicado era Kanikōsen, que narra o sofrimento da tripulação de um barco de pesca de caranguejos sob a exploração implacável da indústria capitalista. Faltou dizer, porém, que a coleção incluía também adaptações de obras muito anteriores à própria existência do capitalismo (como Rei Lear e A divina comédia) e escritos de cunho político que de forma nenhuma se identificavam com a literatura de esquerda (como o manual de conduta marcial Bushidō: A alma do Japão e Mein Kampf, o manifesto nazista de Adolf Hitler). Portanto, era de se esperar que houvesse outras razões por trás do esperado sucesso do lançamento que viria (sucesso, aliás, que acabou se confirmando e gerando uma pequena corrida pelo licenciamento dos títulos em diversos países e idiomas).

De fato, a coleção Manga de Dokuha (em uma adaptação livre, algo com o sentido de “Aprendendo em mangá”) tem características bastante peculiares. A primeira delas é ser uma empreitada coletiva, centrada na figura de seu editor, Kasuke Maruo. É ele quem supervisiona um a um os roteiros (que já ultrapassaram a marca das cem HQs lançadas), que mais tarde são encaminhados para um estúdio terceirizado (Variety Artworks), que faz todo o trabalho de arte. É por isso que os títulos não trazem créditos de roteirista e desenhista responsáveis pela adaptação, apenas o nome do autor do original — a propriedade intelectual de todos os mangás é da East Press. Por outro lado, isso não significa de maneira nenhuma menos liberdade artística. Como toda adaptação que se preze, os mangás da coleção são obras com identidade própria — ainda que derivadas —, e portanto devem ser lidas e compreendidas de acordo com seus próprios termos, e não como simples espelhos do original. Assim, o milenar manual de estratégia militar A arte da guerra se torna a história de uma grande guerra entre os Sete Reinos da China medieval, em que o general Sun Tzu vai elaborando suas táticas geniais à medida que a ação acontece. O Manifesto do Partido Comunista, por sua vez, se transforma na saga de um grupo de trabalhadores que tenta se livrar da exploração patronal, o que serve como pano de fundo para expor a teoria e os fatos por trás da proposta ideológica de Marx e Engels. Em Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, o protagonista vive no século XIX, e é criado dentro dos preceitos cristãos antes de sair propagando a ideia de que Deus está morto. E nem mesmo as obras de ficção precisam se limitar aos elementos contidos no original: em A metamorfose, por exemplo, passagens da biografia do autor, Franz Kafka, são incorporadas à história do personagem Gregor Samsa.

Se de fato cada contato com uma grande obra abre novos territórios e horizontes mentais para os leitores, os mangás desta coleção são uma prova do quanto essas incursões podem ser variadas. Alguns deles são como um voo panorâmico, que delineia os contornos gerais e as paisagens do local que está sendo visitado. Outros são como expedições noturnas lideradas por um guia, em que o facho de luz se concentra com mais ênfase em determinados aspectos, e a impressão que se tem do todo é inevitavelmente filtrada pelos olhos de quem segura a lanterna. Outros, ainda, são como picadas abertas a golpes de faca ao rés-do-chão — só depois de muito explorar é possível ter uma visão aproximada do todo. Seja como for, mesmo com toda sua pluralidade de abordagens, os mangás da East Press nunca deixam de se guiar por um preceito fundamental a qualquer coleção que se pretenda verdadeiramente universal: a livre exploração de pensamentos e ideias.

* Alexandre Boide é tradutor e responsável pela preparação dos títulos dos Clássicos em Mangás (da East Press) que estão sendo publicados na Coleção L&PM Pocket.

A arte da guerra, Hamlet, O grande Gatsby e Assim falou Zaratustra em mangá já chegaram. Os próximos títulos a serem lançados são O contrato social, A metamorfose, Manifesto do partido comunista, Em busca do tempo perdido e Ulisses.

mangas_classicos_quatro

Os clássicos em mangás que já estão disponíveis

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *