O idiota da família é a continuação de Questões de método. Seu tema: o que se pode saber de um homem, hoje em dia? Pareceu-me que só poderíamos responder a esta pergunta através do estudo de um caso concreto: o que sabemos – por exemplo – de Gustave Flaubert? Para isso, precisaremos totalizar as informações de que dispomos a seu respeito. Nada prova, a princípio, que essa totalização seja possível e que a verdade de uma pessoa não seja plural; os dados são muito
diferentes por natureza: ele nasceu em dezembro de 1821, em Rouen – eis um tipo; ele escreveu à amante, muito tempo depois: “A Arte me espanta” – eis outro. O primeiro é um fato objetivo e social, confirmado por documentos oficiais; o segundo, também objetivo quando nós nos atemos à coisa dita, remete, por seu significado, a um sentimento vivido, e nada decidiremos sobre o sentido e o alcance desse sentimento se antes não tivermos estabelecido se Gustave é sincero, em geral e, em especial, nesta circunstância. Não correremos o risco de chegar a camadas de significados heterogêneos e irredutíveis? Este livro tenta provar que a irredutibilidade é apenas aparente e que cada informação, colocada em seu devido lugar, torna-se a parte de um todo que está constantemente sendo feito e, ao mesmo tempo, revela sua profunda homogeneidade com todas as outras partes.
Afinal, um homem nunca é um indivíduo; seria melhor chamá-lo de universal singular: totalizado e, por isso mesmo, universalizado por sua época, ele a retotaliza ao reproduzir-se nela como singularidade. Universal pela universalidade singular da história humana, singular pela singularidade universalizante de seus projetos, ele exige ser estudado a um só tempo pelas duas pontas. Precisaremos encontrar um método apropriado. Apresentei os princípios de um em 1958 e não repetirei o que disse então: prefiro mostrar, sempre que necessário, como ele se faz no próprio trabalho para obedecer às exigências de seu objeto.
Uma última palavra: por que Flaubert? Por três motivos. O primeiro, bastante pessoal, há muito tempo deixou de valer, apesar de estar na origem dessa escolha: em 1943, ao reler sua Correspondência na má edição Charpentier, tive a sensação de ter contas a ajustar com ele e de que devia, para isso, conhecê-lo melhor. Desde então, minha antipatia inicial transformou-se em empatia, única atitude exigida para compreender. Por outro lado, ele se objetivou em seus livros. Qualquer um pode dizer: “Gustave Flaubert é o autor de Madame Bovary”. Mas qual a relação do homem com a obra? Eu nunca falei sobre isso até então. Nem ninguém, que eu saiba. Veremos que é dupla: Madame Bovary é derrota e vitória; o homem que se mostra na derrota não é o mesmo exigido para sua vitória; será preciso entender o que isso significa. Por fim, suas primeiras obras e sua correspondência (treze volumes publicados) manifestam-se, veremos, como a mais estranha confidência, a mais facilmente decifrável: como se ouvíssemos um neurótico falando “ao acaso” no divã do psicanalista. Acreditei que me seria permitido, para esta difícil provação, escolher um tema fácil, que se revelasse com facilidade e sem o saber. Acrescento que Flaubert, criador do romance “moderno”, está na interseção de todos os nossos problemas literários de hoje.
Agora, é preciso começar. Como? Pelo quê? Pouco importa: podemos entrar em um morto da maneira que quisermos. O essencial é partir de um problema. Daquele que escolhi, em geral pouco se fala. Leiamos, no entanto, um trecho de uma carta à srta. Leroyer de Chantepie: “É de tanto trabalhar que consigo calar minha melancolia natural. Mas o velho fundo muitas vezes reaparece, o velho fundo que ninguém conhece, a chaga profunda sempre escondida”.* O que isso quer dizer? Uma chaga pode ser natural? De todo modo, Flaubert nos remete à sua proto-história. O que se precisa tentar conhecer é a origem dessa chaga “sempre escondida” e que, de todo modo, tem origem em sua primeira infância. Este não será, acredito, um mau começo. (Jean-Paul Sartre, Prefácio de O idiota da família)