Por Caroline Chang*
Minha tia, uma das figuras principais da minha formação, é psicóloga de orientação freudiana. Numa certa fase da minha infância, eu dizia que, quando crescesse, queria ser “pepsicóloga”. Quando a realidade oferecia algum fenômeno, alguma relação ou explicação não-evidente, mas inconsciente, logo aprendi a lascar, do alto do meu então um metro de altura: “Freud explica” ou “Que lapso!”. Em seguida, quando meu pai e a minha mãe se separaram, e eu, em 1983 e com sete anos, passei a viver com o meu pai, a importância do Freud na minha vida recrudesceu. Passei a frequentar duas vezes por semana o consultório de uma “psi” (as diferenciações profissionais não eram claras para mim então) que, entre uma brincadeira aqui e um jogo ali (meu preferido, e acho que o dela também, era o “Jogo da vida”), me incitava a falar e fazia perguntas, algumas das quais incômodas. Na minha adolescência, o hábito de falar para elocubrar já era parte de mim, e mais uma vez fiz psicoterapia, com uma freudiana-kleiniana. De forma que não considero um exagero dizer que devo muito a Freud, esse gênio da raça, “Sigi de ouro”, como lhe chamava a mãe. De forma que me senti imbuída não só de uma pesada responsabilidade moral e profissional, mas de um senso de responsabilidade íntimo, talvez primo da gratidão, quando, cerca de três anos antes de janeiro de 2010 (data em que a obra freudiana entraria em domínio público), demos início à necessariamente longa, lenta e pedregosa empreitada de publicar algumas de suas principais obras em formato de bolso.
Assim como acho que num mundo ideal todo mundo deveria/poderia fazer psicoterapia ou análise pelo menos uma vez na vida, considero – respeitadas as leis de direito autoral – um motivo de comemoração para a humanidade quando obras do calibre das de Freud se tornam disponíveis em várias edições, em várias traduções, editadas por diversos profissionais e pelas mais variadas casas. E creio que é uma razão de orgulho para nós, brasileiros, o fato de no nosso país haver uma tradição psicanalítica forte a ponto de várias editoras respeitadas estarem neste momento trabalhando em novas edições e traduções de Freud. (Eu, que cresci lendo tão-somente as coleções Vaga-Lume e Pra Gostar de Ler, que era o que havia de disponível na época, garanto: quanto mais numerosas as opções, melhor para o público-leitor).
Foi um nervosismo, mas sobretudo um prazer, editar O futuro de uma ilusão e O mal-estar na cultura, duas das obras chamadas “sociais” de Freud, com a colaboração de Renato Zwick (que não poupou esforços para alcançar, no português, o mesmo nível de clareza linguística e conceitual dos originais em alemão); de Edson Sousa e Paulo Endo, profundos e apaixonados conhecedores não apenas da obra freudiana, mas da vida do pai da psicanálise; de Márcio Seligmann-Silva, verdadeiro entusiasta das releituras que as novas traduções de Freud proporcionarão a todos, e que foi suficientemente audaz e suficientemente fiel ao espírito revolucionário do autor ao propor “cultura” para tradução de “Kultur”, em vez da tradução tradicional, “civilização”; e de Renata Udler Cromberg, que enriquece e atualiza a leitura de O futuro de uma ilusão com seu prefácio, tão humanista, tão certo da possibilidade de melhora das pessoas.
Espero que os leitores gostem. Para aqueles que tomarem contato com Freud pela primeira vez por meio desses livros, que suas vidas sejam doravante iluminadas por essa inteligência maior.
Boa leitura.
* Caroline Chang é editora e tradutora da L&PM
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