Sobre tradução
Passei boa parte de minha vida traduzindo furiosamente, sobretudo do inglês. Para ser mais preciso, até os vinte anos, quando traduzi um livro de Pearl Buck para a José Olympio. O livro se chamava Dragon Seed, foi publicado com o nome de “A estirpe do dragão” e, como eu não tinha contato com o editor, foi assinado pelo intermediário, o escritor Antônio Pinto Nogueira de Accioly Netto, diretor da revista O Cruzeiro, mediante 60% dos direitos.
Depois disso abandonei a profissão para nunca mais, por ser trabalho exaustivo, anônimo, mal remunerado. Só voltei à tradução em 1960, com a peça “Good People” (A fábula de Brooklyn), de Irwin Shaw, para o Teatro da Praça. Depois disso traduzi mais três ou quatro peças – entre elas “The Playboy of The Western World”, uma obra-prima, de tradução quase impossível devido à sua linguagem extremamente peculiar.
Com a experiência que tenho, hoje, em vários ramos de atividade cultural, considero a tradução a mais difícil das empreitadas intelectuais. É mais difícil mesmo do que criar originais, embora, claro, não tão importante. E tanto isso é verdade que, no que me diz respeito, continuo a achar aceitáveis alguns contos e outros trabalhos meus de vinte anos atrás; mas não teria coragem de assinar nenhuma de minhas traduções da mesma época. Só hoje sou, do ponto de vista cultural e profissional, suficientemente amadurecido para traduzir. As traduções, quase sem exceção (e não falo só do Brasil), têm tanto a ver com o original quanto uma filha tem a ver com o pai ou um filho a ver com a mãe. Lembram, no todo, de onde saíram, mas, pra começo de conversa, adquirem como que um outro sexo. No Brasil, especialmente (o problema econômico é básico), entre o ir e o vir da tradução perde-se o humor, a graça, o talento, a poesia, o pensamento, e, mais que tudo, o estilo do autor.
Fica dito – não se pode traduzir sem ter uma filosofia a respeito do assunto. Não se pode traduzir sem ter o mais absoluto respeito pelo original e, paradoxalmente, sem o atrevimento ocasional de desrespeitar a letra do original exatamente para lhe captar melhor o espírito. Não se pode traduzir sem o mais amplo conhecimento da língua traduzida mas, acima de tudo, sem o fácil domínio da língua para a qual se traduz. Não se pode traduzir sem cultura e, também, contraditoriamente, não se pode traduzir quando se é um erudito, profissional utilíssimo pelas informações que nos presta – que seria de nós sem os eruditos em Shakespeare? –, mas cuja tendência fatal é empalhar a borboleta. Não se pode traduzir sem intuição. Não se pode traduzir sem ser escritor, com estilo próprio, originalidade sua, senso profissional. Não se pode traduzir sem dignidade.
O texto acima foi retirado de uma entrevista para a revista Senhor em 1962 e está no recém lançado Shakespeare traduzido por Millôr que traz as peças “Hamlet”, “A megera domada”, “O rei Lear” e “As alegres matronas de Windsor” no mesmo volume.