Por Ivan Pinheiro Machado*
Certa vez, no inverno de 1977, bem no começo da L&PM, nós recebemos uma carta estranha. O remetente assinava G. Rocha. O endereço era Rua Borges de Medeiros, numero tal, Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro. Abri a carta. Naquela época, meros iniciantes, não era comum recebermos cartas. Era um texto denso, datilografado em duas páginas de papel ofício, espaço um. A assinatura era de Glauber Rocha, o autor de “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, “Terra em transe”, “Dragão da maldade contra o santo guerreiro” entre outros clássicos do cinema “brazyleyro” – como ele gostava de escrever – e mundial. Glauber queria publicar a sua obra. Ele mencionava “vários livros”, e especialmente uma “História do Cinema”. Segundo ele escrevia na carta de junho de 1977:“minha História do Cinema” tem 1.000 páginas (…), é um livro original porque eu revelo entrevistas inéditas com cineastas do mundo todo e conto a História do ponto de vista de um cineasta que viveu por dentro da cozinha. O livro trata do cinema em todos os lugares, do início do século até hoje. Conto a verdadeira história do Cinema Novo, quinze anos de política e cultura. Não existe bibliografia de cinema que preste no Brasil”. Ele prosseguia propondo um acordo editorial prevendo adiantamento e uma percentagem de 10% sobre o preço de capa, assegurando a ele os direitos para o exterior. E encerrava assim: “Não quero enviar originais pelo Correio. Mandem alguém aqui, ou venham aqui. (…) As editoras tem que financiar os autores… Acontece que temos poucos autores modernos depois que morreram Erico Veríssimo, Guimarães Rosa… Jorge Amado é o último romancista popular… No entanto, nossa literatura é uma criança, como nossa sociedade…” . Ele indicava um telefone. Liguei e atendeu uma voz feminina com um sotaque castelhano. Identifiquei-me, combinamos dia e hora para uma reunião e fui para o Rio. Por coincidência, viajei com um amigo meu, o Nilo Lopumo, que acabou sendo testemunha do périplo de três visitas que cumprimos juntos a um apartamento em um edifício de luxo na Lagoa Rodrigo de Freitas.
O clímax e o anticlimax – Ao sair do elevador, sentia-se um cheiro acre de “canabis” por todo o andar. Indo atrás do cheiro, chegava-se ao apartamento 501, emprestado por um amigo psiquiatra a Glauber Rocha e sua namorada, uma deslumbrante loura colombiana. Quando entramos no belíssimo apê com vista para a Lagoa, o grande Glauber começou um longo, brilhante e exaltado monólogo sobre sua obra como escritor e o potencial cinematográfico que a história do Rio Grande do Sul possuía. Ele sugeria uma filmagem da Guerra dos Farrapos, com Marlon Brando no papel de Bento Gonçalves. “Eu ligo pra ele e faço o convite. Ele me conhece. Este tipo de astro topa trabalhar num filme por uma participação na bilheteria”. E sugeria que Anita Garibaldi fosse a Sandra Braga que, segundo ele, era perfeita para o papel, “ela nasceu para ser a Anita Garibaldi”. Por fim, nos mostrou dois calhamaços datilografados com mais ou menos 500 páginas cada um. O primeiro era uma coletânea de “ensaios e observações filosóficas” e o segundo calhamaço era um “romance épico” que se chamaria “Django”, baseado na vida de Jango Goulart, o presidente deposto pelo golpe de 1964. “Depois eu mostro a História do Cinema”. Eu e o Nilo, vindos lá do extremo do Brasil, observávamos perplexos aquela explosão verborrágica. Ele tinha uma fluência impressionante. Falava sobre o momento de abrandamento da ditadura, da genialidade de Golbery do Couto e Silva, o Ministro da Casa Civil, que seria o “grande artífice do desmonte do regime”, era “o Gênio da raça”, frase que ele repetia sempre quando se referia ao Golbery e que já ficou célebre. Depois de quatro horas de discursos, fomos embora. Combinamos voltar no outro dia para resolver os detalhes, pois ele me entregaria os originais de “Django”, dos ensaios & filosofia que eu não consigo lembrar o título e da tal “História do Cinema” de 1.000 páginas. Voltamos conforme o combinado. Foi mais uma sessão de discursos brilhantes. Não vimos mais original nenhum, ele só falava, falava e, de tempos em tempos, fazia uma longa pausa arfando, exausto. Descansava um pouco e voltava a falar, falar. A conversa acabou no começo da noite porque sua mulher lembrou que eles tinham que prestigiar a pré-estréia de “Dona Flor e seus dois maridos”, o romance de Jorge Amado, filmado por Bruno Barreto. Ficamos de voltar no outro dia às 15 horas para pegar o material. Conforme o combinado, cheguei às 15 horas ao apê da Lagoa. Apertei a campainha. A loura atendeu a porta e sem me convidar para entrar disse constrangida: “o Glauber não pode atender, mas manda dizer que desistiu de publicar os seus livros…”. E encerrou o assunto, fechando a porta. Eu fiquei ali parado por uns dois minutos tentando absorver aquele desfecho surreal. À noite voltamos para Porto Alegre. Sem livro nenhum, mas com esta incrível história para contar…
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Bah, essa é uma verdadeira história glauberiana, do começo ao fim. Lembro-me de ter visto entrevistas com o João Ubaldo e o Darcy Ribeiro e ambos, estupefatos e apavorados, relataram coisas semelhantes. O primeiro estava apavorado porque receberia o Jorge Amado e a Zélia Gattai, em casa. O Glauber, alucinado, insistia que iria dar “um tapinha pra Jorge”. Quanto ao Darcy, ele caiu no erro de levar o Glauber a uma importante cerimônia diplomática, e o cineasta, de repente, começou a fazer fumaça num lugar não muito distante do jantar e dos discursos. Glauber Rocha, eis aquele que escapou a todos…