Em abril de 1483, ou seja, um ano após sua chegada [em Milão], consegue finalmente uma encomenda séria, por intermédio de Ambrogio e Evangelista Predis. Trata-se do famoso retábulo da Virgem dos Rochedos. (…)
Em vez de prender-se ao tradicional grupo estático de uma Virgem com o Menino cercada de anjos e profetas, ele se lança na representação de uma antiga lenda que imagina o encontro do Menino Jesus com o jovem João Batista em pleno deserto. Lenda bastante iconoclasta, embora até o momento ninguém se inquiete com ela. Essa encenação audaciosa, quase herética, permite a Leonardo pintar uma fabulosa paisagem de rochedos e maciços, a ponto de fazer dela o principal ator em cena, carregando-a de valor simbólico como no mito da caverna. A Imaculada funde-se com a maternidade virginal, o interior e o exterior se alternam em ambientes densos e úmidos, jogos de luz artificial mostram as trevas como uma luva virada pelo avesso. “O útero da terra que revelaria o mistério das forças vitais em suas cavidades percorridas pelas águas fundadoras…”, assim Leonardo percebe sua Virgem dos Rochedos.
Embora não seja o primeiro a pintar madonas dessacralizadas – foi Filippo Lippi quem primeiro tratou a Virgem como mulher carnal, sensual e até mesmo excitante – Leonardo oferece a Maria o amor materno e a ansiedade que sempre o acompanham. Torna-a familiar, comovente e muito jovem, com aquele incrível sorriso misterioso que flutua sobre seu turbulento filho. Suas madonas vão servir de modelo aos pintores dos séculos vindouros. (…)
O trecho acima está no livro Leonardo da Vinci, de Sophie Chauveau (Série Biografias L&PM) e ganha destaque aqui porque, ontem, 28 de julho, foi anunciado no periódico britânico The Guardian que o quadro em questão, Virgem dos Rochedos vai estar exposto ao lado de outro quadro de Leonardo da Vinci chamado… Virgem dos Rochedos. É isso mesmo que você leu: duas telas de mesmo nome, pintadas pelo mesmo gênio, vão estar finalmente juntas num mesmo museu. Esclarecendo: da Vinci pintou duplamente a mesma cena descrita no início deste post. A primeira não só foi negada pelo mecenas que a encomendou como Leonardo foi obrigado a pintar uma Virgem dos rochedos mais “conveniente”. Veio daí a segunda (que não se sabe ao certo em que ano foi finalizada), levemente diferente da original, em que João Batista ganhou um crucifixo para que as pessoas conseguissem identificá-lo.
A primeira versão está no Louvre, em Paris, e a segunda na National Gallery de Londres. Mas agora, graças à aguardada exposição “Leonardo da Vinci: Painter at the Court of Milan”, que começa em novembro, o museu frances vai emprestar a sua Virgem para o museu inglês para que ambas possam ficar lado a lado e o público tenha a chance de compará-las. Uma espécie de “jogo dos sete erros” para os amantes das belas artes (que você até pode tentar fazer aqui, clicando na imagem acima para aumentá-la).